Opinião

Burrice é o racismo

O corpo negro é elemento central na reprodução de desigualdades. Está nos cárceres repletos, favelas e periferias designadas como moradias

São muitos os diagnósticos que apontam a situação do negro em nosso país. Somos mais de 54% da população do Brasil. Ou seja, mais de cem milhões de brasileiros e estamos na base da pirâmide social. Tal situação não é por acaso, é fruto de um desenvolvimento civilizatório que foi capaz de desumanizar e objetificar o corpo negro.

Transformações ímpares na história da humanidade foram obtidas com as idas e vindas de negros, de uma margem a outra do oceano, pelos portos negreiros da África Ocidental e Central para as Américas e a Europa. Esses corpos foram e ainda são objetos de pilhagem. O corpo negro é elemento central na reprodução de desigualdades. Está nos cárceres repletos, favelas e periferias designadas como moradias.

Por outro lado, números irrisórios de cientistas negros, de escritores negros, de executivos negros, de apresentadores negros, de editores negros, de legisladores negros… É bom lembrar que negros fazem parte do tal “povo brasileiro”. Ou será que insistir em afirmar conceito tão geral seja uma tentativa de invisibilizar esse quadro?

“Preto fedido”. Quem nunca ouviu essa expressão? Sem dúvida, a maioria dos brasileiros. Neste sentido, a referência que o secretário de Educação do município do Rio de Janeiro, Cesar Benjamin, faz à atriz Taís Araújo, há poucos dias, ao chamá-la de “linda e cheirosa”, é o antagonismo que legitima o xingamento. Talvez pelo fato de ela ser a negra-exceção, a negra que rompeu a barreira da invisibilidade e é bem-sucedida profissionalmente.

Enquanto mulher negra, tenho a obrigação de lembrar alguns capítulos da nossa História — que parecem passar providencialmente despercebidos pelos defensores do “povo brasileiro”. O corpo da pessoa negra já foi provedor de lucros aos escravocratas, por longos períodos históricos. As mulheres negras, para além do trabalho, tinham que servir aos homens brancos. A muitas negras cabia ainda, principalmente após a proibição do tráfico internacional de mão de obra escrava, o papel de “reprodutoras”, para a ampliação e a recomposição da população de escravos.

Os abusos, açoitamentos e mutilações, aos quais os escravos estavam sujeitos, quando se tratava de mulheres negras, eram cruelmente requintados por toda forma de coerção sexual. As consequências desta violência não foram a mestiçagem difundida hoje como um “produto nacional”, mas a vulnerabilização do corpo da mulher negra, que continua exposta a todo tipo de agressão ética, moral ou sexual. Ou seja, mestiçagem e democracia racial são concepções ancoradas na prática da violência contra as pessoas negras, principalmente as mulheres.

O conceito ilusório de “povo brasileiro” ainda não desapareceu. Mas, no que depender do povo preto desse Brasil, irá. Vamos surpreender o tácito acordo do poder. Seremos firmes, pessoas ativas, que chegam desafinando o coro dos contentes. Burrice é querer lutar contra isso. A chegada da mulher negra na institucionalidade surpreende. Nossa presença assusta o conluio masculino, branco e heteronormativo.

Marielle Franco é vereadora (PSOL) no Rio