Por Raoni Alves, G1 Rio


Policiais armados em helicóptero blindado da Polícia Militar em operação na Maré — Foto: Francisco de Assis/ TV Globo

O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia nesta sexta-feira (26) a votação que vai decidir se as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro seguirão suspensas até o final da pandemia da Covid-19.

A proibição imposta por decisão liminar do ministro Edson Fachin, começou a valer no último dia 5 de junho. Os ministros do STF vão avaliar, dessa vez, se mantém os efeitos da medida cautelar.

Um estudo feito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com o portal Fogo Cruzado, apontou que o número de mortes por invenção policial diminuiu 75,5% durante o período de vigência da lei.

“Eu espero que os ministros se sensibilizem com os efeitos positivos da liminar. Me parece que os esforços deveriam estar concentrados para a preservação de vidas”, disse Daniel Hirata, professor de sociologia da UFF.

O que diz a liminar

O texto da lei em vigor prevê responsabilização civil e criminal em caso de descumprimento das proibições. A decisão de Fachin permite operações policiais em comunidades somente em "hipóteses absolutamente excepcionais", sem exemplificar quais seriam.

Nesses casos, são necessárias justificativas por escrito — com comunicação imediata ao Ministério Público (MP-RJ). O órgão é o responsável pelo controle externo da atividade policial.

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Pedido de suspensão de operações

O pedido pela suspensão das operações da polícia enquanto durar a crise sanitária foi protocolado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e entidades sociais que defendem novos modelos de atuação das forças policias nas comunidades.

A discussão sobre a maneira de atuação das policias nessas áreas foi amplificada depois das mortes de João Pedro, de 14 anos, morto durante uma operação conjunta das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo; Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, baleado durante uma operação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Morro da Providência, no Centro; e João Vitor, de 18 anos, morto na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio.

As operações que terminaram com a morte de Rodrigo e João Vitor também interromperam a distribuição de cestas básicas que acontecia para ajudar moradores dessas localidades.

Depois de demonstrar que essas mortes poderiam provocar mudanças no protocolo de atuação de policiais nas favelas do RJ, o governador Wilson Wtzel (PSC) voltou atrás e informou que não suspenderia as operações nas comunidades durante a pandemia da Covid-19. Posteriormente ocorreu a decisão de Fachin.

Na última semana, a Polícia Civil do Rio afirmou que a decisão de Fachin impediu uma ação para prender criminosos que atacaram centro de distribuição - baleando seguranças durante o assalto - e de fazer a perícia no local onde o menino Kauan Vitor, de 11 anos, foi baleado na Maré.

Estudo comparou média de mortes

O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/Uff), em parceria com a DataLab Fogo Cruzado, apontou que o número de mortes por invenção policial diminui 75,5% durante o período de vigência da lei.

Os pesquisadores compararam o período entre 5 e 19 de junho desse ano, em relação à média registrada no mesmo período dos anos anteriores, entre 2007 e 2019.

Após a decisão do ministro Edson Fachin, houve redução de 68,3% das operações policiais, além de redução da quantidade de pessoas feridas em decorrência de ações da polícia, em 49%.

"Nos últimos anos havia um crescimento no número de operações muito grande e no caso dos 15 dias de junho nós percebemos o período de menor número de operações em toda a série histórica, desde 2007. Isso indica que a liminar foi extremamente efetiva para conter esse avanço das operações, que é especialmente dramático no caso de pandemia que estamos vivendo", explicou Daniel Hirata, professor da UFF e integrante do grupo de estudos.

O trabalho de pesquisa estima que, ao menos, 18 vidas foram poupadas no período devido a suspensão das operações policiais.

Para Daniel Lozoya, integrante do núcleo de defesa dos direitos humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a decisão preliminar deve ser mantida até o final da pandemia.

"Em 15 dias, foram 18 vidas preservadas, segundo o estudo. Se projetarmos isso para um ano, seriam 468 vidas poupadas com a permanência da vigência dessa medida cautelar. A gente defende a manutenção da medida cautelar", pontuou Lozoya.

Coronel da PM discorda

Ao analisar os números apresentados pelo estudo, o comandante do Batalhão de Polícia de Choque do RJ, coronel André Luiz Batista, apresentou uma outra leitura dos fatos. Para ele, se houve redução no número de mortes por intervenção policial, deve ter aumentado o número de crimes nessas regiões. Batista acredita que a maioria das pessoas mortas durante as operações são criminosas que entraram em conflito com a polícia.

"Quando esses camaradas morrem são porque estavam portando fuzis e pistolas e decidiram enfrentar o estado. São agentes fora da lei, marginais. Não é uma morte computável do ponto de vista humanitário. Até porque eles poderiam matar outras pessoas, poderiam cometer homicídios e assaltos. Se eles deixaram de morrer, provavelmente cometeram outros crimes. Temos que ver se o estudo levanta o aumento de latrocínios, assaltos, roubo de carro", argumentou o coronel.

Polícia como serviço essencial

Contrário à manutenção das proibições impostas pela justiça, o comandante do Batalhão de Choque, levanta a bandeira da polícia como serviço essencial. Em sua opinião, é errado acreditar que a PM só trabalha quando há conflito. Segundo o coronel, a maior parte do serviço da polícia no Rio é de assistencialismo e por isso a proibição seria um erro.

"A polícia não é só tiro porrada e bomba. Entendemos também que a polícia é um serviço essencial. Quando temos espaços onde é preciso ter autorização para atuar, estamos classificando a polícia como serviço não essencial", explicou.

"A maioria das ocorrências da PM são de atenção, de assistência e isso acontece muito nas comunidades. O projeto das UPPs mostra isso", explicou Batista.

O coronel também lembrou que a realidade do Rio de Janeiro é única e que é muito difícil diferenciar o que é patrulhamento de regiões e operações policiais.

"O que nós vivemos aqui no Rio há mais de 40 anos é uma guerra assimétrica impossível de ser controlada pelas vias normais de temperatura e pressão. Em contrapartida, nós precisamos ter a polícia ostensiva, que tem que atravessar velinha na rua".

"A Policia Militar trabalha para o povo, não para o secretario ou o governador. É inegável que houve um ganho com as UPPs nesses territórios conflagrados. A polícia tem que estar presente", concluiu o comandante.

Disputa semântica

Se existe argumentos contra e a favor da manutenção das restrições, um assunto é consenso entre todos. Para os envolvidos, o texto do ministro Edson Fachin dá margem para interpretação quando deixa em aberto a possibilidade de operações em "hipóteses absolutamente excepcionais".

"Hoje, o grande dilema dessa discussão é a interpretação. Sempre que a gente consegue uma conquista, o estado ressignifica isso. Quem diz o que é excepcional é o próprio estado. Talvez o mais positivo, para além da própria liminar, é fazer um debate na sociedade sobre o que é excepcional", pontuou Fransérgio Goulart, integrante da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.

O defensor público Daniel Lozoya explica que expressões como essas utilizadas pelo ministro Fachin são comuns na Justiça. Segundo ele, esse é um conceito jurídico indeterminado, quando o texto dá margem para interpretações.

"Toda incursão em favela com grande aparato policial deveria ser considerada 'absolutamente excepcional'. Mas o que acontece no RJ é que temos uma banalização dessas operações especiais, que movem blindados e helicópteros causando tiroteios. Isso no RJ tem uma frequência muito intensa. E isso tem impactos devastadores especialmente para moradores de favelas".

PM faz operação no Complexo da Maré nesta quinta (18) — Foto: Francisco de Assis/ TV Globo

Lozoya lembra que os tiroteios que ocorrem em grande parte das operações, provocam interrupção des aulas, o fechamento de postos de saúde e causam vítimas de bala perdida, entre outros danos.

"A polícia precisar entrar em uma comunidade para cumprir mantado de prisão ou em uma situação de urgência, é legitimo. É necessário que a polícia tenha que atuar. Só que a gente tem um histórico de abusos e uso excessivo da força que gerou essa necessidade da decisão do Supremo. Foi uma decisão para frear essa política genocida", ponderou o defensor público.

Para o comandante do Batalhão de Choque, a falta de definição sobre o que é "excepcional" pode ser uma armadilha para o policial.

"Se você faz uma lei e não defini o que é excepcional, isso é perigoso. Vira uma armadilha. Imagina se eu faço uma operação, credito como excepcional e dar errado? Porque pode dar errado. São territórios complexos, sociedade complexa, operações complexas. Quando você infesta um local com armas e traficantes dispostos a matar, você torna aquele ambiente complexo", argumentou.

André Luiz Batista segue seu raciocínio e diz que se a preocupação é com a letalidade, o correto deveria ser aumentar as ações de combate ao tráfico de armas e drogas que entram no Rio de Janeiro.

"Não se produz cocaína, fuzis AK47, M16 e tantos outros no território nacional. Mas nós temos territórios com realidade tóxicas, com armamentos estrangeiros, com uma bandidagem cruel e facínora, que mantém pessoas sob julgo de uma escravidão tosca", comentou.

O coronel disse ainda que em muitos casos a morte de inocentes é provocada por criminosos, que atacam inocentes para frear o avanço da polícia. Em relação aos casos envolvendo policiais, o comandante comentou que existem mecanismos de apuração e punição para PMs que participam de ações que terminam com a morte de moradores sem envolvimento com o tráfico.

"O PM é o estado, esta identificado e tem que responder civil e penalmente pelo erro que cometeu. Mas se o ataque for de alguém do tráfico, a justiça não vai prevalecer porque os moradores não vão falar. Exite o medo dos moradores em relaçao ao tráfico", concluiu.

O que dizem as instituições

Ao RJ2 da última quarta-feira (24), as polícias Civil e Militar comentaram a decisão do STF.

“Mesmo em época de pandemia o crime não para, o crime é muito dinâmico. E justamente esses marginais se utilizam desses argumentos como novas oportunidades para poder praticar novos crimes”, disse o subsecretário Operacional da Polícia Civil, delegado Felipe Curi.

O porta-voz da Polícia Militar, coronel Mauro Fliess, pediu que os ministros do STF voltem a autorizar operações sem restrições.

“Aqui apelamos para uma sensibilidade dos membros do STF para entenderem a peculiaridade de um estado como o Rio de Janeiro com diversos grupos criminosos onde há uma disputa territorial envolvendo diversas comunidades”, afirmou Fliess.

A votação sobre a liminar terá início nesta sexta-feira, durante sessão virtual do plenário do STF. Se a questão não for resolvida em uma sessão, o parecer final sobre as operações policias em comunidades do RJ pode só acontecer em agosto, por conta do recesso do judiciário durante o mês de julho. Até lá, fica valendo a proibição das operações em comunidades.

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