Claudia Peluffo de Amorim*

Dom Eugenio Sales, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro por três décadas, foi um líder religioso que sempre conseguiu surpreender: nos anos 50, no Rio Grande do Norte, chegou a ser chamado de "bispo vermelho", por ter ajudado a criar os primeiros sindicatos rurais. Mais adiante, após o golpe de 64, mesmo criticado por parte da esquerda devido a uma aparente passividade frente às arbitrariedades do regime, conquistou a liberdade para presos políticos, que costumava visitar na Páscoa e no Natal, apesar de não ter simpatia pela esquerda. Também escondeu milhares de perseguidos políticos no Palácio São Joaquim, residência do arcebispo do Rio. Além disso, vetou e judicializou o uso de imagens santas no carnaval, ao proibir o desfile da imagem do Cristo Redentor na Marquês de Sapucaí, em 1989, provocando polêmica.

Nascido em 8 de novembro de 1920, em Acari (RN), Eugenio de Araujo Sales passou parte da infância no sertão nordestino, tendo sido criado em uma família muito católica. Sua bisavó, Cândida Mercês da Conceição, foi uma das fundadoras do Apostolado da Oração em sua cidade natal. A vocação para o sacerdócio surgiu no início dos anos 1930, depois que ele foi matriculado num colégio marista de Natal. Antes de optar pela Igreja, pensou em ser engenheiro agrônomo, mas acabou estudando Filosofia e Teologia no Seminário da Prainha, em Fortaleza, entre 1931 e 1943. Sua ordenação como sacerdote foi pelas mãos de dom Marcolino Esmeraldo de Sousa Dantas, bispo de Natal, em 21 de novembro de 1943, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia, a mesma onde fora batizado.

Em junho de 1954, aos 33 anos, o Papa Pio XII o nomeou bispo auxiliar de Natal, sendo ordenado bispo dois meses depois. Quatorze anos mais tarde, o Papa Paulo VI o indicou como arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, tornando-se cardeal um ano depois, em 1969. Nessa época, dom Eugenio Sales foi procurado pelo general Abdon Sena, que lhe pediu para celebrar uma missa pelo Ato Institucional número 5. Promulgado em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 consolidou a ditadura ao conceder poderes extraordinários ao presidente da República e suspender garantias constitucionais. De acordo com a edição do GLOBO de 10 de julho de 2012, a resposta de Dom Eugenio foi a seguinte:

— Vocês, que estão satisfeitos com o AI-5, podem agradecer a Deus, mas não por meu intermédio.

Com a morte de dom Jaime de Barros Câmara, em 18 de fevereiro de 1971 dom Eugenio foi escolhido o novo arcebispo do Rio de Janeiro. Ocupou o posto até 25 de julho de 2001, quando foi sucedido por dom Eusébio Oscar Scheid, arcebispo de Florianópolis, e, em seguida, dom Orani João Tempesta.

Dom Eugenio Sales angariou prestigio e influência ao longo dos 30 anos à frente da Arquidiocese do Rio e foi o principal interlocutor brasileiro do Papa João Paulo II, de quem se tornou amigo. O Papa esteve no Brasil em três ocasiões durante seu episcopado. A primeira delas, em 1980, foi marcada pela expectativa dos brasileiros em receber um papa no país e pela beatificação do jesuíta espanhol José de Anchieta, fundador da cidade de São Paulo. A segunda aconteceu em 1991, quando o Pontífice aproveitou para visitar irmã Dulce, em Salvador. A última passagem de João Paulo II pelo Brasil foi em 1997, quando rezou uma missa campal, no Aterro do Flamengo, no Rio, para 2 milhões de pessoas.

Defensor intransigente dos princípios éticos da Igreja Católica, em sua prelazia dom Eugenio foi um duro opositor do uso de símbolos católicos no carnaval. Em 1989, o carnavalesco da Beija-Flor, Joãosinho Trinta, no enredo “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, resolveu abrir a apresentação com o Cristo esfarrapado. Estrategista, dom Eugenio não reclamou antes. Deixou para a antevéspera do desfile, quando chegou ao barracão a liminar concedida pelo juiz Carlos Ferrari, que proibia a exibição da alegoria. A solução encontrada foi levar o Cristo ao desfile coberto por um plástico preto. O tiro, no entanto, acabou saindo pela culatra: ao contrário do que pretendia a Igreja Católica, a cena se tornou um marco na história do carnaval carioca. Apesar de não ter vencido o carnaval daquele ano, pois o primeiro lugar ficou com a Imperatriz Leopoldinense, a Beija-Flor ganhou quatro Estandartes de Ouro, concedidos pelo GLOBO, entre eles o de melhor escola e melhor enredo. A conquista estampou a primeira página do jornal em 8 de fevereiro de 1989, com a manchete “Beija-Flor dá show e leva 4 Estandartes”.

Criticado por alguns por uma postura silenciosa em relação à ditadura brasileira, diferente de outros religiosos, como dom Paulo Evaristo Arns, em São Paulo, e dom Hélder Câmara, no Rio, dom Eugenio costumava visitar os presos políticos no Natal e na Páscoa e abrigou mais de quatro mil perseguidos pelos regimes militares sul-americanos, entre 1976 e 1982. A maioria vinha da Argentina, mas havia também chilenos, uruguaios e paraguaios. Essa história veio à tona na série de reportagens do GLOBO “O general do Papa”, assinada por José Casado, em março de 2008. Em entrevista publicada no dia 2, o arcebispo declarou:

— Chamei o Frota (general Sylvio Frota), no telefone vermelho. Ele era um "peso-pesado", aliás "pesadíssimo". E falei: Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final, ponto final. Ele não disse nada, nunca reclamou, nem fez cara feia.

Em contrapartida, dom Eugenio foi, também, um dos principais articuladores do desmonte da linha progressista e de esquerda da Igreja Católica na América Latina, a Teologia da Libertação. O cardeal divergia abertamente daqueles que pregavam a favor da luta de classes como forma de libertação social e espiritual entre os mais pobres.

Dom Eugenio morreu em sua casa no Sumaré, no Rio, no dia 9 de julho de 2012, aos 91 anos, de infarto. Seu corpo foi velado e enterrado na Catedral Metropolitana, com a presença do irmão, arcebispo emérito de Natal, dom Heitor de Araujo Sales, e o governador Sérgio Cabral Filho decretou três dias de luto. O site do Vaticano publicou, no dia 10, um telegrama enviado pelo Papa Bento XVI ao arcebispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta, lamentando o falecimento do religioso.

* com edição de Matilde Silveira

Bênção. Aos pés do Cristo Redentor, Dom Eugenio Sales abençoa a cidade: mais de 30 anos à frente da Arquidiocese do Rio de Janeiro

Bênção. Aos pés do Cristo Redentor, Dom Eugenio Sales abençoa a cidade: mais de 30 anos à frente da Arquidiocese do Rio de Janeiro Carlos Magno 18/12/1993 / Agêncua O Globo