Biografia de Paulo Freire será adaptada para o cinema por Cao Hamburger e seu filho, Tom

Cineastas adquiriram direitos de livro sobre o educador escrito por Sérgio Haddad, que dará consultoria ao roteiro
Paulo Freire é um dos homenageados da Bienal de Pernambuco Foto: Maurício Novaes / Itaú Cultural

Entre janeiro e abril de 1963, os cerca de nove mil habitantes de Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, não poderiam imaginar que fariam parte de uma verdadeira revolução da educação, cujos reflexos são debatidos até hoje. Então com 75% de sua população formada por analfabetos, a cidade viu 300 de seus moradores aprenderem a ler e escrever em 40 horas de aulas, ministradas pela equipe de jovens universitários liderada por Paulo Freire. A aplicação do método que leva o nome do pedagogo pernambucano, reconhecido mundialmente, ganhou caráter histórico quando a sua última aula, em 2 de abril, foi dada pelo próprio presidente da República, João Goulart.

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A cerimônia de formatura contou com a presença de outras autoridades, como o governador potiguar Aluízio Alves e o então comandante da Região Militar no Recife, o general Castelo Branco — que, ao final da formatura teria dito a jornalistas que estavam “engordando cascavéis nesses sertões”. Um ano depois, o general seria empossado como o primeiro presidente militar da período ditatorial. Entre os primeiros atos do novo regime, Paulo Freire seria preso e seu do Programa Nacional de Alfabetização, implementado no início de 1964, desarticulado.

É justamente a experiência de Angicos que será o ponto de partida para uma cinebiografia inspirada no livro “O educador: Um perfil de Paulo Freire” (2019), de Sérgio Haddad, cujos direitos foram adquiridos este ano pelo cineasta Cao Hamburger e seu filho, Tom. Os dois estão em estágio de pesquisa para o roteiro, que contará com consultoria do próprio Haddad e Madalena Freire, filha do pedagogo, que participou do projeto pioneiro ao lado do pai.

Paulo Freire com um ano de idade Foto: Reprodução / Divulgação
A casa onde nasceu Paulo Freire, na Estrada do Encanamento, no bairro da Casa Amarela, no Recife Foto: Reprodução / Divulgação
Paulo Freire em sua formatura no curso de direito, em 1947, no Recife Foto: Reprodução / Divulgação
Paulo Freire na década de 1960 Foto: Reprodução / Divulgação
Paulo Freire em 1988 Foto: Amancio Chiodi / Divulgação
Paulo Freire em 1988 Foto: Amancio Chiodi / Divulgação
Paulo Freire em entrevista à TV francesa em 1990 Foto: Maurício Novaes / Dilvugação
Paulo Freire no Congresso Municipal de Educação, em São Paulo, em 1991 Foto: Maurício Novaes / Divulgação
Paulo Freire no Theatro Municipal de São Paulo em 1991 Foto: Maurício Novaes / Divulgação
Paulo Freire em 1993 em Angicos (RN), onde ele aplicara seu método de alfabetização no início dos anos 1960 Foto: Reprodução / Divulgação

— Para além da importância histórica, a experiência de Angicos é muito forte narrativamente. Foi uma chave tanto para a obra teórica que o Paulo escreveu depois quanto para outros momentos marcantes da sua vida, como o exílio e a volta após a Anistia — comenta Cao. — O cinema e a TV, como entretenimento de massa, trazem a possibilidade de levar essa história a um público maior. Muita gente que hoje diz não gostar do Paulo Freire, mas sem nem saber sobre o que é a sua obra, vai poder conhecê-lo .

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Para pai e filho, filmar a vida de Paulo Freire é um desdobramento natural de uma família envolvida com a educação. Cao ganhou dois Emmys Internacional com séries relacionadas ao tema: “Pedro & Bianca” e “Malhação: Viva a diferença”. Tom lança no Dia das Crianças a série “Caverna de Petra”, no Canal Futura. Ana Maria, mulher de Cao, e Carolina, sua filha, são educadoras — esta última, coincidentemente, teve um projeto na Escola Municipal Nelson Mandela reconhecido ano passado com o Prêmio Paulo Freire de Qualidade do Ensino Municipal, dado pela Câmara de Vereadores paulistana.

— A trajetória do Paulo tem muito apelo, inclusive internacional. Ele deu aula no Chile, nos Estados Unidos, em países europeus. Viajou por mais de 160 países pesquisando e aplicando sua pedagogia — observa Tom. — O filme vai poder dar a sua devida dimensão histórica, que foi apagada pela ditadura. Acredito que o público de fora também irá se interessar.

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Autor do livro, o professor e pesquisador Sérgio Haddad chegou a conhecer Freire, quando foram colegas na PUC-SP, antes de o pedagogo assumir a Secretaria de Educação paulistana na gestão de Luiza Erundina, em 1989.

— Ele era verdadeiramente interessado na vida das pessoas, e aplicava na prática o que teorizava. Ele via qualquer lugar como um espaço de educação, e não só o ambiente escolar — lembra Haddad. — Tentei buscar uma linguagem mais leve, mas não menos densa, que outras biografias. Outros livros sobre ele são voltados ao próprio campo da educação, e segui por uma abordagem mais literária.

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Haddad também vê na experiência de Angicos uma passagem capaz de cativar tanto os leitores quanto o futuro público do filme.

— Foi Angicos que projetou o nome do Paulo, no Brasil e no exterior. Ainda que a sua obra seja mais teórica, até hoje ele é lembrado pela aplicação do seu método de alfabetização — observa o escritor. — Aquilo mexeu com tudo, até com a política da cidade, já que na época analfabetos não podiam votar. Em 40 dias, surgiram 300 novos eleitores, o que incomodou quem controlava os currais eleitorais. Acho que o público vai se questionar: “Por que um homem que dedicou a vida a alfabetizar foi preso, exilado?”.

Autor e diretores torcem para que a produção, a ser rodada em 2022, reduza a controvérsia que passou a ser relacionada à figura de Freire por segmentos conservadores , e que contaminou inclusive as celebrações do centenário do patrono da educação no Brasil, no último dia 19 de setembro.

— Ninguém é obrigado a admirar ou concordar com as ideias do Paulo Freire. Mas negar sua contribuição para a educação é como se o mundo inteiro se maravilhasse vendo o Pelé jogar e por aqui nós o ignorássemos — compara Cao.