• Neusa Kunhã Taquá em depoimento a Kizzy Bortolo
  • Colaboração para Marie Claire
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A cacica Neusa Kunhã Taquá, da etnia Guarani Ñandewa (Foto: Arquivo pessoal)

“Nasci no Mato Grosso do Sul, mas com menos de um ano me mudei com os meus pais e seis irmãos mais velhos para a aldeia Boa Esperança, no Espírito Santo. Depois de quatro anos, nos mudamos novamente, dessa vez para Paraty. Como aqui não tínhamos terra fértil para plantar, a opção foi fazer artesanato para vender nas ruas da cidade. Plantávamos no pequeno espaço que tínhamos, apenas para subsistência, e, com o passar do tempo, meu pai conseguiu juntar dinheiro e compramos oito hectares de terra na comunidade de Rio Pequeno, região rural de Paraty. Construímos nós mesmos a nossa casa e só três anos depois, em 2000, nos mudamos de vez para a aldeia Tekohá Dje’y. Nessa época, eu tinha 11 anos e andava, junto a meus irmãos, mais de sete quilômetros até chegar na estrada onde pegávamos um ônibus para a escola.

Já naquela época, acompanhava meu pai nas reuniões e nos movimentos indígenas. Passei toda a minha infância ouvindo os caciques falando sobre a importância do território para a nossa sobrevivência. Naquele período, minha aldeia também passou a participar das reuniões com outros indígenas e o CTI (Centro de Trabalho Indigenista), organização sem fins lucrativos que defende os direitos dos povos originários há anos. Em 2002, passamos a ter mais aceso e conhecimento aos nossos direitos.

Já passei por diversas discriminações. Desde novinha sou assediada por homens brancos, era xingada na rua, vivia todo tipo de humilhação. Ouvir os mais velhos falarem sobre a violência e o massacre que meu povo sofreu -- e ainda sofre – ampliou meu olhar para o mundo do homem branco e me fez amadurecer depressa.

Meu pai sempre incentivou a nossa família a plantar milho, aipim, batata doce, cana de açúcar, feijão de corda e banana. Naquele tempo, a estrada de acesso à nossa aldeia era uma trilha e as casas ficavam distantes uma das outras. Assim, não tínhamos relações com quem vivia perto da gente, e sempre ouvíamos gracinhas e piadinhas maliciosas. Isso quando não me chamavam para dar umas voltas. Como nosso povo usa cocar, em respeito aos nossos ancestrais, vivámos ouvindo que ‘índio com pena na cabeça parece galo da serra’. A violência vinha acompanhada de gargalhadas dirigidas a nós.

Passamos por dificuldades nas ruas do centro histórico para poder vender nossa arte. A prefeitura não aceitava que nós indígenas vendêssemos nas ruas e sempre criavam situações desagradáveis. Por várias vezes a guarda municipal ia até lá para nos retirar à força. Quando não conseguiam, jogavam água da janela dos casarões antigos em cima dos nossos artesanatos.

Em 2010 foi finalizado o estudo antropológico do território da terra indígenas do Rio Pequeno, onde moro, e no dia 20 de abril de 2017, a Funai reconheceu os 2370 hectares de terra indígena ocupados. Depois disso, se iniciou uma série de ataques ao meu povo e a nossa aldeia. Primeiro o prefeito anterior a esse se posicionou contra a demarcação apoiando os posseiros brancos e o racismo. Os xingamentos ficaram ainda mais frequentes. Nunca esqueci do posseiro que um dia me disse na estrada: ‘Índio é tudo vagabundo, é alimentado pela Funai e pelo governo. Índio não trabalha e acha que pode vir nos tirar das nossas casas’. E disse mais: ‘Posso até sair daqui, mas antes mato três índios e aí sim, entrego a minha casa. Vou atirar no pé do cacique para ele ficar aleijado’.

As ameaças se intensificaram depois do despacho da Fundação Nacional do Índio (Funai), de abril de 2017, que reconheceu a ocupação dos povos indígenas da região. O processo de demarcação, no entanto, voltou a estagnar no governo de Jair Bolsonaro. O conflito com os posseiros resultou no assassinato do meu irmão mais velho, João, em janeiro de 2018. Ele era o vice-cacique da nossa aldeia e foi morto depois de ser ameaçado por posseiros. Até hoje não sabemos quem mandou matá-lo. João tinha 42 anos e deixou esposa e um filho, hoje com 26 anos. A nossa aldeia seguiu acuada e sob ataque permanente.

Em 2019, outro indígena da aldeia sofreu uma tentativa de assassinato no nosso território. Tentaram também contra a vida do meu sobrinho, que já havia sido ameaçado em outras ocasiões. São constantes as intimidações e tentativas contra a minha própria vida. Desde essa época, vivo sob proteção da polícia.

Assim que meu irmão foi assassinado, nossa aldeia decidiu me nomear vice-cacique da aldeia em seu lugar. A luta é grande, as ameaças ainda mais. Só por isso aceitei. As ameaças ficaram ainda mais frequentes e diretas. Mas não esmoreci.

Em setembro de 2020, sofremos outros ataques durante a noite. Durante quatro noites seguidas, homens encapuzados atiraram pertos das nossas casas. Desesperados, tivemos que pedir abrigo em aldeias vizinhas para nos manter seguros. Por causa desses ataques, fui inserida no programa de proteção aos defensores dos direitos humanos do estado do Rio de Janeiro. E, mesmo assim, ainda não me sinto segura. Já mataram meu irmão, tentaram matar meu pai e o meu sobrinho. Me ameaçam constantemente. Como podemos viver assim? Acuados e com medo?

Fui ameaçada por um posseiro, em plena luz do dia, dentro do supermercado de Paraty. Nós, que somos o povo originário desse território. Que estamos apenas tentando sobreviver dentro dessa guerra gerada pelo homem branco.

A verdade é que sentimos na pele a dor de perder nossos líderes indígenas. É muito triste ver nossas crianças convivendo com violência tão de perto no seu dia a dia. Hoje, o governo também influencia a população a gerar violência contra nós, contra os quilombolas, contra os pobres, contra as periferias em geral, a sociedade carente e vulnerável.

Para mim, tem sido difícil conviver com pessoas que me olham com cara feia e de raiva, que vivem me ameaçando. Tenho uma filha de três anos e estou grávida de cinco meses. Por puro medo, nem saio mais de casa. E não fui só ameaçada fisicamente. As fakes news também me trazem um verdadeiro pânico. Estou sendo acompanhada até hoje por psicólogos, porque fiquei muito vulnerável diante de toda essa situação. Não me conformo com a injustiça cometida, com as falsas acusações contra mim e contra nossa aldeia. Ter que ver as nossas crianças sentindo medo, acuadas, sem poder sair de suas casas, não podendo ir à cachoeira brincar, nem à escola estudar. Não podemos mais vender o nosso artesanato na rua devido a tantas ameaças e hostilidade. Esse é o pesadelo que vivemos hoje dentro da nossa aldeia.

É importante que a sociedade conheça a nossa cultura, as nossas tradições, os nossos cantos e o nosso modo de vida atualmente para entender a nossa luta diária pelo nosso território, pela nossa terra! Nossa luta é pela vida, para manter a nossa futura geração intacta, para as nossas crianças viverem e manterem a nossa cultura indígena.

Em pelo século 21, querem acabar com o processo de demarcação das terras indígena, criando projetos de lei como a PL 490, a tese do marco temporal, que determina que só temos direito a terras que já estavam em nossa posse na data da promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988. Querem congelar a história dos povos originários. As bases se deslocaram de suas aldeias em plena pandemia e se reuniram no início de setembro em Brasília em luta pela vida. Mesmo grávida, com as pernas inchadas, fui para lá com outras 14 mulheres da nossa aldeia.

Foi bom reencontrar as pessoas do movimento. Tivemos vários momentos lindos com danças, rituais, batismo de cura da mãe terra com plantas medicinais, sementes, água e terra. Foi forte e surgiu em nós uma enorme esperança.

É sempre bom ressaltar que a vida da mãe terra depende das ações dos seres humanos e se destruímos tudo isso, sofreremos as consequências no futuro sem ter água para beber, ar para respirar, alimentos para viver. O nosso corpo vem da mata, do espírito da mata. Faremos o possível e o impossível para preservar a nossa flora, fauna, florestas e matas.”