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Indígenas entram com ação na Justiça Federal para afastar presidente da Funai: 'Grande risco'

Articulação dos Povos Índigenas do Brasil, por meio da Defensoria Pública da União, usa data simbólica de aniversário da Constituição e denuncia a atuação do órgão para inviabilizar demarcações de terras e ser omisso na gestão da pandemia
Marcelo Xavier, presidente da Funai Foto: Jorge William / Agência O Globo
Marcelo Xavier, presidente da Funai Foto: Jorge William / Agência O Globo

RIO - A Articulação dos Povos Índigenas do Brasil (Apib) entrou nesta terça-feira com uma ação na Justiça Federal de Brasília para afastar do cargo o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier da Silva, por improbidade administrativa..

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Por meio da Defensoria Pública da União (DPU), a entidade propôs uma ação civil pública contra o governo federal  e a Funai para garantir os direitos dos povos originários. O pedido ocorre no aniversário da Constituição Federal, que completa 33 anos hoje e na qual se baseia o documento da Apib para pedir o afastamento de Xavier. Nele, os indígenas afirmam que o atual presidente, que é ligado aos ruralistas , representa um "grande risco".

Na ação, Apib e DPU afirmam que, desde que Xavier ascendeu ao cargo em 2019, o órgão tem inviabilizado a demarcação de terras indígenas, omitido-se na defesa judicial dos direitos indígenas e facilitado invasões e grilagem de terras. Também citam a má gestão da pandemia no que diz respeito à proteção dos povos indígenas.

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— Nós vamos levar ao conhecimento da Justiça Federal vários atos que o presidente da Funai vem praticando nesses últimos anos que vão desde o abandono da defesa dos povos indígenas, atuação contrária aos direitos dos povos indígenas e perserguição aos povos e organizações indígenas. E com isso fica muito claro que o presidente Marcelo Xavier tem atuado ferindo os princípios constitucionais que orienta a administração pública federal e essa será a base do pedido de afastamento — afirma Luiz Henrique Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib.

Os indígenas argumentam que ao longo dos últimos dois anos de sua gestão, a Funai tem se distanciado de sua missão institucional. Mencionam que a administração atual, por meio de atos normativos, tem inviabilizado políticas públicas de proteção ao patrimônio indígena.

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— Trata-se de uma ruptura constitucional que nós tivemos na política indigenista brasileira. A Constituição inaugurou uma nova era para os povos indígenas, de respeitar as diferenças e autodeterminação dos povos. E por isso essa data simbólica da ação, de aniversário de 33 anos da Constituição, justamente no momento em que  estamos vivenciando uma política contrária do proposto. Principalmente a Funai. A razão de ser da Funai é justamente a existência dos povos indígenas, portanto, é promover a sua defesa. Mas hoje ela atua de forma totalmente contrária aos interesses e direitos dos indígenas — completa Terena.

Procurado, o  presidente da Funai afirmou que "não se manifesta acerca de demandas propostas em seu desfavor perante a Justiça, local apropriado em que prestará seus esclarecimentos".

Omissão na pandemia

A Apib expõe ainda que as omissões da Funai frente ao combate da pandemia nos territórios tradicionais teve uma consequência direta na disseminação da Covid-19 entre indígenas. Desde o início da crise sanitária, a entidade cobra transparência do governo em relação aos dados de vacinação entre os povos. Até o momento , de acordo com a Apib, 1.209 indígenas morreram após contrair o coronavírus entre 163 povos.

"A Fundação Nacional do Índio, durante a pandemia, se limitou a promover políticas públicas de bem estar dos povos indígenas que estivessem apenas em terras demarcadas, empenhou forças em publicar expedientes normativos que autorizassem a exploração econômica dos territórios", escreve.

O documento também cita que, em atuação articulada com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, pelo menos 27 processos de demarcação que já estavam em seus trâmites finais foram devolvidos pela pasta à autarquia para uma nova análise. Mesmo com recomendação do Ministério Público Federal (MPF) para que enviasse os processos para conclusão, a Funai corroborou a tese aventada pela Advocacia Geral da União sobre o marco temporal.  Segundo esse critério, os indígenas só poderiam reivindicar a demarcação de terras ocupadas por eles antes da promulgação da Constituição. A questão está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

"Permitir sua permanência no cargo no curso do processo oferece um grande risco, agravando-se os danos até aqui já constatados, tendo em vista que ele poderá, através de uma ação ou omissão, continuar a agir contra os princípios que regem a instituição e contra as políticas públicas que constitucionalmente a Funai deveria implementar e vir a atingir frontalmente os interesses dos povos indígenas", justificam Apib e DPU no pedido em caráter liminar.

Perseguição e mordaça

Delegado da Polícia Federal, Xavier foi indicado para o cargo na Funai pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). É, portanto, alinhado aos ruralistas e à pauta bolsonarista de exploração de terras indígenas. No período em que está à frente da Funai, Xavier coleciona polêmicas e medidas consideradas , na visão dos indigenistas, um completo retrocesso nas conquistas desses povos desde a promulgação da Constituição.

Para além da omissão na pandemia de coronavírus nas aldeias e na paralisação dos processos de demarcação de terras apontadas pela Apib, a gestão de Xavier também é criticada  pelo desmonte das coordenadorias regionais que atuam nas bases de proteção às terras indígenas, a nomeação de missionários para atuar na chefia de índios isolados e de recentes contatos e pela perseguição a lideranças indígenas.

Em maio, a Polícia Federal intimou a líder indígena Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, em um inquérito sobre difamação aberto a pedido da Funai. O órgão acusou a ativista e a entidade de difamarem o governo federal durante a série na web "Maracá", em 2020, pela defesa  dos povos indígenas e contra violações de direitos cometidas contra esses povos durante a pandemia da Covid-19. O líder indígena Almir Suruí também foi intimado, mas a Justiça Federal determinou o arquivamento dos inquéritos .

Na época, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns) criticou os inquéritos abertos contra as lideranças indígenas a pedido da Funai, a quem acusou de fazer "constrangedor papel de intimidação a indígenas" .

"A Funai, ao invés de cumprir a sua missão institucional de proteger os direitos constitucionais dos povos indígenas, denunciando violações a esses direitos no contexto da pandemia, assim como combatendo as invasões cada vez mais catastróficas das terras indígenas, vem se prestando ao constrangedor papel de silenciar denúncias e intimidar indígenas, neste caso com o auxílio inexcusável da Polícia Federal".