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PF conclui que Bolsonaro vazou dados sigilosos

Trabalho foi finalizado mesmo após o presidente ter ignorado uma ordem judicial e ter deixado de prestar depoimento
Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília Foto: Adriano Machado / REUTERS
Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília Foto: Adriano Machado / REUTERS

BRASÍLIA — A Polícia Federal (PF) concluiu que o presidente Jair Bolsonaro, o deputado Filipe Barros (PSL) e o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens da Presidência da República, divulgaram uma investigação sigilosa que apura um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tendo cometido o crime de violação de sigilo funcional. O objetivo, de acordo com a PF, foi espalhar informações falsas sobre a segurança das urnas eletrônicas. Com isso, houve danos à confiança no sistema de votação usado no Brasil. Segundo a delegada Denisse Dias Rosas Ribeiro, a ausência de Bolsonaro, que deixou de cumprir uma ordem judicial para prestar depoimento na última sexta-feira, não atrapalhou o trabalho. A Advocacia-Geral da União (AGU), que defende o presidente, vem sustentando que o inquérito sobre o ataque hacker não era sigiloso, versão que é contestada pela PF.

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Embora a Polícia Federal tenha concluído que houve crime, Bolsonaro e Filipe Barros não foram indiciados porque há um entendimento, entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), de que essa medida só pode ser aplicada a pessoas com foro privilegiado se houver prévia autorização. Assim, apenas o ajudante de ordens foi indiciado. O documento foi enviado para no gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator no Supremo Tribunal Federal (STF) de um inquérito aberto para apurar o vazamento. Moraes já determinou que o relatório seja analisado em até 15 dias pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que poderá concordar ou não com a PF. O indiciamento é apenas a conclusão da polícia de que há elementos para atribuir a uma pessoa responsabilidade por um crime.

Em trecho do documento entregue ao STF, a delegada escreveu: "Todos, portanto, revelaram fatos que tiveram conhecimento em razão do cargo e que deveria permanecer em segredo até conclusão das investigações, causando danos à administração pela vulnerabilização da confiança da sociedade no sistema eleitoral brasileiro e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tudo com a adesão voluntária e consciente do próprio mandatário da nação."

Esse caso envolve a divulgação de um inquérito da Polícia Federal sobre um ataque hacker ao TSE , durante uma transmissão ao vivo no qual Bolsonaro atacou a credibilidade das urnas eletrônicas, embora não houvesse relação do ataque com o funcionamento das urnas.

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"Considerando os elementos de interesse coligidos, que apontam a autoria, a materialidade e as circunstâncias da divulgação, de conteúdo de inquérito policial por funcionários públicos (presidente da república, ajudante de ordem e deputado federal), na live do dia 04 de agosto de 2021 e sua publicização por diversos meios, com o nítido desvio de finalidade e com o propósito de utilizá-lo como lastro para difusão de informações sabidamente falsas, com repercussões danosas para a administração pública, dá-se por encerrado o trabalho da Polícia Judiciária da União", diz trecho do relatório.

A delegada destacou que o inquérito sobre o ataque hacker "continha diligências investigativas sigilosas em andamento e que não deveriam ter sido publicizadas a particulares, pois estavam relacionadas à apuração".

Ainda segundo a delegada: "Por fim, não se procedeu à tomada de declarações de Jair Messias Bolsonaro, diante do não atendimento da ordem judicial de comparecimento para oitiva. Essa ausência, por outro lado, não trouxe prejuízo ao esclarecimento dos fatos".

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O Globo procurou o Planalto perguntando se o presidente quer se manifestar a respeito da conclusão do inquérito pela PF, e aguarda retorno. Também entrou em contato com o ajudante de ordens Mauro Cid, que não quis comentar o assunto. No Twitter, Felipe Barros disse que, segundo o delegado responsável pela apuração do ataque hacker, o inquérito não era sigiloso.

Bolsonaro durante live Foto: Bolsonaro durante live
Bolsonaro durante live Foto: Bolsonaro durante live

"O delegado que investigava a invasão hacker de 2018, em seu depoimento, confirmou que o inquérito não estava sob sigilo. Se a delegada Denisse Ribeiro insiste que os dados eram sigilosos, porque ela não indiciou o delegado por, em tese, ter mentido em seu depoimento?", escreveu o deputado.

O inquérito foi aberto no STF a pedido do TSE. Ele foi obtido pelo deputado, em requerimento enviado ao delegado da PF Victor Neves Feitosa Campos, para subsidiar os trabalhos de uma comissão na Câmara que analisava uma proposta do voto impresso. Os dois foram ouvidos pela Polícia Federal.

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Delegado tenta se explicar sobre sigilo

O delegado Victor Campos, que acabou sendo afastado do inquérito por ordem do ministro Alexandre de Moraes, disse que forneceu os autos da investigação do ataque hacker ao deputado para ajudar nos debates da comissão, tendo sido surpreendido pela informação de que, em 4 de agosto, Filipe Barros e Bolsonaro estavam divulgando seu teor na transmissão ao vivo. A delegada Denisse, responsável pela apuração do vazamento, não indiciou o colega por entender que ele não teve a intenção de vazar os documentos.

Em seu depoimento, ele disse que o inquérito do ataque hacker não estava em segredo de justiça nem havia diligências em andamento que pudessem ser prejudicadas, não vendo problemas em compartilhá-lo com o deputado. Ainda segundo ele, a etiqueta "sigiloso" foi colocada no caso no sistema da PF após a transmissão ao vivo de Bolsonaro.

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Por outro lado, alguns documentos nesse processo apontavam sim para a existência de sigilo, o que levou o delegado a tentar esclarecer alguns pontos. Na portaria instaurando o inquérito do ataque hacker, por exemplo, o delegado escreveu: "a suposta invasão a sistemas e bancos de dados do TSE, com acesso e divulgação de dados sigilosos daquele tribunal". No depoimento, porém, ele destacou que "não afirmou em tal portaria que tais dados seriam classificados como sigilosos".

Sobre um despacho de juiz auxiliar da presidência do TSE com a anotação de que deveria haver sigilo, o delegado afirmou que, no curso desse inquérito, a própria Corte enviou por duas vezes documentos sem qualquer menção de que deveria haver segredo.

Em relação à tarja de "sigilo" presente em todas as páginas encaminhadas pelo TSE à PF, ele disse que "a impressão de 'sigilo' em um documento não tem por si só o condão de classificá-lo a ponto de restringir o acesso à informação". Afirmou também que "a situação análoga e corriqueira ocorre com alguns documentos que são carimbados como 'sigiloso' por escrivães e agentes no âmbito dos inquéritos".

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De acordo com o termo de depoimento do delegado, ele ainda tentou apontar para eventual responsabilidade do deputado: "Acrescenta que caso se entenda que exista informação sigilosa ou restrita nos autos fornecido ao deputado federal Filipe Barros, esse dever de sigilo foi repasso formalmente ao deputado federal na medida que em que houve uma resposta formal da Polícia Federal ao pedido também feito formalmente."

O delegado informou não ter sido comunicado de que haveria a divulgação do inquérito na transmissão ao vivo. Disse ainda que, no curso da sua investigação, não identificou qualquer elemento que permitisse afirmar que houve manipulação ou fraudes em qualquer eleição, ou violação às urnas eletrônicas.

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Testemunha disse que foi informada de sigilo

Outra pessoa ouvida foi Mario Alexandre Gazziro, um professor de engenharia e de computação forense que assessorou o deputado na comissão da Câmara. Ele participou da "live" de Bolsonaro e contou à PF que, ao receber cópia dos autos, foi alertado de que era um procedimento sigiloso. Afirmou também que, nas conversas com Filipe Barros, eles usavam a expressão "inquérito sigiloso" para se referir à investigação do ataque hacker. Disse ainda que, pela análise do caso, não era possível concluir que houve fraude ou manipulação de votos na eleição de 2018, e que discorda das insinuações feitas por Bolsonaro. Contou também que, se soubesse que haveria o vazamento, não teria participado da transmissão ao vivo.

Um perito da PF, que atuou na investigação do ataque hacker, também foi ouvido. Ele disse ter sido procurado por Filipe Barros, que queria um encontro, mas respondeu que estava em teletrabalho e isolamento social, e sugeriu que o deputado procurasse os "canais hierárquicos" caso tivesse algum interesse em reunião.

Filipe Barros disse à PF que entregou pessoalmente a Bolsonaro uma cópia impressa do inquérito sobre o ataque hacker. Segundo o termo de depoimento, ao ser questionado por que divulgou o conteúdo do inquérito policial em desvio de finalidade, ou seja, fora do âmbito das discussões sobre a proposta do voto impresso em discussão na Câmara, ele "respondeu que não houve desvio da finalidade".

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No relatório, a delegada da PF afirmou que o ajudante de ordens Mauro Cid tentou justificar suas ações dizendo que o deputado lhe apresentou um documento atestando que não havia sigilo, "informação essa inexistente nos autos". Segundo o termo de depoimento, ele afirmou que a transmissão ao vivo "foi apresentada de forma extraordinária a pedido do deputado federal Filipe Barros, pois a ideia era apresentar o conteúdo do inquérito policial envolvendo o caso relacionado a invasão no TSE".

Os arquivos da investigação foram encaminhados a ele por meio do aplicativo de mensagens Whatsapp. De acordo com o termo de depoimento do ajudante de ordens, "o deputado encaminhou o mencionado arquivo em razão da solicitação feita pelo presidente, pois ele informou que iria divulgar o conteúdo do inquérito nas redes sociais". Assim, o deputado "encaminhou 4 arquivos, sendo o conteúdo integral do inquérito e mais três outros de documentos considerados mais relevantes existentes dentro da investigação".

Os arquivos foram encaminhados ao irmão de Mauro Cid, que os disponibilizou em um servidor nos Estados Unidos, permitindo seu acesso na internet. À PF, o irmão contou que tirou o link do ar depois que o ajudante de ordens da Presidência da República solicitou sua remoção.

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Na terça-feira, durante a primeira sessão do TSE no ano, o presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, criticou Bolsonaro e disse que a atitude do presidente expôs dados que ajudam "milícias digitais e hackers" que queiram invadir o sistema do TSE.

— Informações sigilosas que foram fornecidas à Polícia Federal para auxiliar uma investigação foram vazadas pelo próprio presidente da República em redes sociais, divulgando dados que auxiliam milícias digitais e hackers de todo mundo que queiram invadir nossos equipamentos. O presidente da República vazou a estrutura interna da TI [tecnologia da informação] do Tribunal Superior Eleitoral. Tivemos que tomar uma série de providências de reforço da segurança cibernética dos nossos sistemas para nos proteger. Faltam adjetivos para qualificar a atitude deliberada de facilitar a exposição do processo eleitoral brasileiro para ataques criminosos — disse Barroso na terça.