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Opinião

Para superar o racismo individual

Será que sabem que o racista é aquele que tem um ‘amigo’ negro?

A brutalidade acontecida no Carrefour pede a todos os brasileiros profundas reflexões. Se amamos o Brasil, precisamos ter a coragem de revisitar o nosso racismo individual (que muitas vezes é um racismo “recreativo”), grupal e estrutural. Tudo isso embutido em nosso dia a dia.

Como surge e se constrói o racismo dentro de cada pessoa? Quando o vice-presidente Mourão fala que não há racismo no Brasil, ele está sendo alimentado por quais fontes científicas? Quando o presidente Bolsonaro diz que “tensões raciais são alheias à História do Brasil” e que há um movimento político para “destruir a diversidade e dividir os brasileiros”, quais fontes científicas alimentam suas afirmações? As 25 tentativas de destruição dos Quilombos dos Palmares não foram tensões raciais? Por que Portugal perdeu 24 e só ganhou a última?

Em 1988, quando a Assembleia Nacional Constituinte instituiu o crime de racismo — imprescritível e inafiançável, que é hoje o art. 5º, inciso XLII, da Constituição Federal —,  reconheceu antes de tudo um fato: a existência de um racismo estrutural na sociedade brasileira. E  reputou que a permanência do preconceito racial era tão grave que introduziu o crime na lista dos direitos fundamentais. Aqueles que não podem ser alterados por emenda constitucional, como se utilizasse a cláusula pétrea para se contrapor à igualmente pétrea incompreensão do racista. Mourão, Bolsonaro e seus seguidores sabem disso?

Será que sabem que o racista é aquele que tem um “amigo” negro, que tem cozinheira negra na casa e, há 30  anos, concede-lhe folga quinzenal, porque a considera ser da família? Afirma sem constrangimento que muitos pretos têm alma branca. Sobe o vidro do carro com rapidez quando vê o menino negro vender bala. Grita, sem pensar duas vezes, “vai crioulo” para incentivar o craque do time do seu coração. Repete uma frase que sintetiza todas estas condutas, quando afirma, com ares de antropólogo, que “não há racismo no Brasil”. Como fazer  uma  pessoa perceber o seu  racismo?

O racista não acredita que o homem negro e a mulher negra ganhem menos e trabalhem mais. Não crê na desigualdade provocada desde os tempos da escravidão,  que tornou o negro um cidadão de segunda classe, no que se refere ao acesso aos serviços públicos universais, aos bens culturais e econômicos. Desfaz do sistema de cotas para ingresso nas universidades e no serviço público e julga necessárias intervenções violentas nas comunidades pobres.

As estatísticas mostram que a violência mata mais pessoas negras do que brancas. A falta de atendimento nos hospitais mata mais pessoas negras. O coronavírus mata mais pessoas negras. Toda violência simbólica representativa da hierarquização social no Brasil atinge todos os dias os afro-brasileiros. Até transformar o Dia da Consciência Negra, feriado duramente conquistado, num dia de luto, no crime terrível ocorrido em Porto Alegre, cuja perpetração jamais seria imaginável contra um branco.

Observar tão dura realidade não pode gerar qualquer gesto conformista. Leva as pessoas que procuram a verdade a enxergar o racismo individual que vai se transformar no racismo estrutural. Não enxergar o racismo na morte de João Alberto, João Pedro e  Marielle —  e incontáveis outras vidas negras em um processo que retira nossa credibilidade de país civilizado —  é grave! Países cultos e desenvolvidos não discriminam, não humilham, não matam.

É hora de cumprir a Constituição Federal, hora de punir indivíduos racistas, empresas racistas. Educar as crianças brancas e negras conforme a Lei 10.639/2003 para que cresçam sem preconceito, e recomendar a todos os brasileiros, especialmente os autodeclarados brancos, todos os dias refletir e até repetir em voz alta: Existe racismo no Brasil! E eu não quero continuar sendo racista.

Augusto Werneck é procurador do Estado do Rio de Janeiro,  e professor de Direito e Frei David Santos especialista em ações afirmativas