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Bolsonaro chega à Rússia no auge da tensão na fronteira da Ucrânia e com agenda restrita

Covid-19 e crise geopolítica reduzem tamanho da comitiva e encontros
O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em um encontro no Itamaraty em Brasília em novembro de 2019 Foto: PAVEL GOLOVKIN / AFP
O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o presidente da Rússia, Vladimir Putin, em um encontro no Itamaraty em Brasília em novembro de 2019 Foto: PAVEL GOLOVKIN / AFP

DOHA, Qatar - Não foram poucos os conselhos para que Jair Bolsonaro desistisse da viagem à Rússia, onde chegará no auge da tensão entre o o governo de Vladimir Putin e o Ocidente, que há dias fala em risco “iminente” de uma invasão russa da Ucrânia. Alertado de que a visita poderia criar desgaste com os EUA e a União Europeia (UE), o presidente nem chegou a considerar a hipótese de cancelar o compromisso. Nesta segunda, ele embarca para Moscou, onde se reunirá com Putin na quarta-feira, encarando 16 horas de voo e cinco testes de Covid para atender as exigências sanitárias do Kremlin.

Os preços do gás natural e da energia elétrica dispararam na manhã desta segunda-feira na Europa com o temor da invasão. Bolsas europeias operam em queda.

A justificativa para manter a viagem é que as relações comerciais com a Rússia são estratégicas para setores como agronegócio e energia. Em ano eleitoral e com Bolsonaro atrás nas pesquisas, o encontro com um líder global também busca mostrar algum prestígio internacional.

Economicamente, porém, as exportações russas para o Brasil são muito mais importantes que a troca no sentido inverso. Em 2021, o Brasil vendeu aos russos US$ 1,587 bilhões, principalmente em soja (22% do total), carne de aves, café, amendoins, açúcar e carne bovina. As vendas russas, que somaram US$ 5,699 bilhões, são mais concentradas: adubos e fertilizantes representaram 62% do total, seguidos de carvão, óleo combustível ou petróleo e lingotes de aço.

A possibilidade de avanço na pauta comercial é relativamente pequena, e focada no agronegócio:o Brasil tentará exportar mais produtos acabados para os russos, que tentarão vender mais insumos e defensivos. O ponto alto será a confirmação dacompra da Unidade de Fertilizantes Nitrogenados (UFN3) da Petrobras, que fica em Três Lagoas (MS) pelo grupo Acron.

Dessa maneira, a agenda política e bilateral tende a ser mais efetiva. Porém, ao contrário do argentino Alberto Fernández, que visitou Moscou no início do mês para agradecer o apoio à vacinação contra a Covid-19 com o imunizante Sputnik V e obteve uma declaração de apoio aos argentinos na disputa com os ingleses pelas Ilhas Malvinas, especialistas não veem um objetivo estratégico claro para o Brasil:

— O Fernández tinha objetivos mais claros. Mas o Bolsonaro quis fazer uma viagem, qualquer viagem, para tentar mostrar que não está isolado. O convite de Putin veio a calhar, e sempre se pode indicar algum avanço na área de comércio e investimentos — afirmou Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV.

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Na recente visita à Rússia, o chefe de Estado argentino expressou o desejo de que seu país seja incorporado aos BRICS (grupo formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul), recebendo, rapidamente, o apoio dos governos russo e chinês. Não se descarta que Putin inclua o assunto na conversa com o presidente brasileiro.

Na crise envolvendo a Ucrânia, Bolsonaro levará o discurso de que é um defensor da solução pacífica de conflitos, como prevê a Constituição. A recomendação é que evite puxar o assunto e não dê declarações tomando partido, reforçando a posição histórica do Brasil de neutralidade. Auxiliares do governo, porém, admitem que o principal tema atual da geopolítica não ficará de fora do encontro. Os dois presidentes terão um almoço e está previsto um comunicado conjunto.

A crise também deverá ser abordada na reunião entre os ministros das Relações Exteriores e da Defesa, que também ocorrerá na quarta-feira. Integrantes do governo dizem que a agenda não tem como origem a crise na Ucrânia, mas admitem que a questão deve ser mencionada. O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e o chanceler, Carlos Alberto França, também discutirão com os russos uma cooperação militar e o desenvolvimento das Forças Armadas.

O Brasil assumiu neste ano uma vaga rotativa no Conselho de Segurança, após uma década longe. As prioridades do organismo também estarão sobre a mesa. Quinze países têm direito a voto no Conselho, mas são membros permanentes, com direito de veto, apenas EUA, França, Grã-Bretanha, China e Rússia. Nesse sentido, a agenda em Moscou é cercada da expectativa de que Putin reafirme, como fez em 2014, apoio à candidatura brasileira a uma vaga permanente no CS da ONU. Com Japão, Alemanha e Índia, o Brasil forma o G4, que defende a ampliação do fórum.

O avanço da variante Ômicron reduziu a agenda brasileira a apenas um dia e também obrigou a enxugar a comitiva. Os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Anderson Torres, ficaram de fora do grupo, segundo a última lista.

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O dia 16 começa com uma visita de Bolsonaro ao Memorial do Soldado Desconhecido. Após o encontro com Putin, o presidente se reunirá com o líder da Câmara Baixa do Parlamento russo, a Duma. Depois participará de um encontro de empresários dos dois países.

Bolsonaro viajará na manhã do dia 17 para Budapeste, capital da Hungria, onde se encontrará com o primeiro-ministro Viktor Orbán, líder ultranacionalista e referência para a direita radical brasileira. Será a primeira visita oficial de um presidente brasileiro ao país.

O economista Igor Lucena, membro da Chatham House , de Londres, e da Associação Portuguesa de Ciência Política, acredita que o brasileiro deveria ter incluído uma viagem a Kiev para mostrar neutralidade na crise atual. O país, alerta, precisa tomar cuidado para não sair prejudicado dessa viagem, rompendo a tradição brasileira de defesa da autodeterminação dos povos:

— Nós temos interesses com os EUA, com a UE e também com a Rússia, dentro de um contexto global multilateral. Isso é importante, mas sempre defendendo a democracia, a soberania de cada nação e o pacifismo de uma maneira geral. (Colaborou Eliane Oliveira)