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Sanções dos EUA afetam combate ao coronavírus na Venezuela e Irã

Medidas contra os sistemas financeiros impedem compras de materiais básicos, incluindo remédios e máscaras; Teerã pediu empréstimo de US$ 5 bilhões ao FMI na semana passada
Pessoas fazem fila para receber pacotes com itens usados para tentar evitar o contágio pelo coronavírus em Teerã Foto: STRINGER / AFP
Pessoas fazem fila para receber pacotes com itens usados para tentar evitar o contágio pelo coronavírus em Teerã Foto: STRINGER / AFP

RIO — Um dos países mais afetados pelo coronavírus , com quase 15 mil casos confirmados e 853 mortes , o Irã se encontra perto de um colapso em seu sistema de saúde — algumas autoridades já admitem que o número de infectados pode ser ainda maior, questionando a transparência dos números oficiais, além do plano de ação do governo.

— Se a tendência continuar, não haverá capacidade suficiente — afirmou Ali Reza Zali, um dos principais responsáveis pelo combate à doença, em entrevista à agência IRNA.

Entre os infectados, nomes do primeiro escalão e quase 10% do Parlamento.

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Além das críticas e questionamentos sobre a competência do governo, um consenso é o de que a capacidade de ação das autoridades médicas locais foi duramente afetada pela política de sanções econômicas adotada pelos EUA. A maior parte das medidas internacionais havia sido suspensa com a assinatura do acordo sobre o programa nuclear do país, em 2015, permitindo que o Irã tivesse acesso aos meios "naturais" de comércio exterior, até então bloqueados. O plano foi assinado por seis países: Irã, EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Rússia e China, além da União Europeia.

Contudo, com a chegada de Donald Trump ao poder, o acordo foi revisto e depois abandonado pelos EUA em 2018, que passaram a uma política de "pressão máxima", ampliando as medidas anteriores e virtualmente isolando o país. O governo americano acusa Teerã de manter atividades nucleares para eventualmente construir uma bomba atômica, o que o governo iraniano nega.

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Muito embora as medidas não atinjam diretamente o acesso a medicamentos importados, o bloqueio imposto ao sistema financeiro iraniano e, especialmente, o medo das chamadas "sanções secundárias", afetou seriamente a capacidade de Teerã de comprar esses produtos no exterior. Essas medidas são aplicadas contra empresas que, na visão do Departamento do Tesouro dos EUA, violaram as sanções americanas — como punição, elas perdem acesso ao mercado dos EUA, um risco que poucos estão dispostos a correr.

— Pode levar semanas até que o Irã consiga importar bens que outros países obtêm em dias. Essa demora coloca vidas em risco durante uma crise de saúde pública como a que o país enfrenta neste momento — disse Esfandyar Batmanghelidj, editor do site Bourse & Bazaar, focado na economia iraniana, em entrevista ao GLOBO . — O Irã normalmente consegur importar esses itens apesar das sanções, mas as restrições ao sistema bancário e cadeias de fornecimento complexas são vulnerabilidades em tempos de crise.

Bombeiros participam de ação para desinfetar ruas de Teerã, em mais uma ação para tentar frear o avanço do coronavírus no país Foto: - / AFP
Bombeiros participam de ação para desinfetar ruas de Teerã, em mais uma ação para tentar frear o avanço do coronavírus no país Foto: - / AFP

Uma das alternativas às sanções, um mecanismo conhecido como Instex e mantido pelos signatários europeus do acordo nuclear, em tese permitiria a realização de negócios sem a ameaça das sanções secundárias. Mas, na prática, ele ainda é inócuo. Outra medida, em vigor desde janeiro, é um canal mantido pelo governo suíço para permitir a venda de produtos essenciais, muito embora com muitas restrições.

Pedido ao FMI

No fim de semana, em um apelo ao mundo, o presidente iraniano, Hassan Rouhani , disse que os esforços para conter o coronavírus estão sendo "severamente afetados" pelas sanções, e defendeu que elas fossem suspensas de maneira imediata. O chanceler Javad Zarif disse que era "imoral deixar um valentão matar pessoas inocentes", se referindo diretamente a Donald Trump, que fez da retomada das sanções uma de suas bandeiras na eleição de 2016.

Em outra ação para conseguir financiamento externo, o governo recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para obter um empréstimo emergencial de US$ 5 bilhões — é a primeira vez em que o país recorre ao órgão desde 1962.

— Esse financiamento é importante porque, com ele, o Irã pode encontrar fornecedores de itens como respiradores. Hoje, o país tem acesso limitado a reservas em moeda estrangeira para fazer esse tipo de compra — disse Batmanghelidj.

Ao mesmo tempo, surgem os pedidos internacionais para que alguma das sanções sejam suspensas o quanto antes. Nesta segunda-feira, a China disse que a manutenção das medidas "vai contra o humanitarianismo e atrapalha a resposta à epidemia no Irã e a entrega de ajuda humanitária pela ONU e outras organizações". Segundo o porta-voz da Chancelaria, o país entregou ajuda médica e mandou uma equipe de especialistas ao Irã.

Por enquanto, os EUA dizem que "ofereceram ajuda" a Teerã, sem dar detalhes. Ao mesmo tempo, o secretário de Estado, Mike Pompeo, sinalizou esperar algum tipo de contrapartida das autoridades iranianas.

— Qualquer nação considerando oferecer assistência humanitária ao Irã por causa da Covid-19 deveria obter um gesto recíproco do regime: liberar pessoas com dupla nacionalidade ou estrangeiros ilegalmente detidos. Esse pedido pode ser atendido pelo regime — afirmou Pompeo na semana passada.

Os EUA também não revelaram se aprovarão o empréstimo de US$ 5 bilhões do FMI aos iranianos — o país é o maior acionista do fundo, e pode vetar o envio do dinheiro.

— Esse será um grande teste para o governo Trump, se eles vão oferecer algum alívio nas sanções para salvar vidas — pontuou Batmanghelidj.

Impacto na Venezuela

Ainda com poucos casos oficiais, 17, a Venezuela não esconde a preocupação com o impacto das sanções em seu já debilitado sistema de saúde, além da forte queda nos preços do petróleo, hoje a principal fonte de financiamento do país. Na quinta-feira passada, o presidente Nicolás Maduro sinalizou que o combate ao coronavírus deverá ser prejudicado pelas medidas americanas.

— Queremos comprar os testes, mas as companhias internacionais nos disseram ter sido ameaçadas pelo governo dos EUA — disse Maduro, reconhecendo o "grande impacto" da queda dos preços do barril.

Mulher usa máscara de proteção em shopping center vazio em Caracas. Cidade está em quarentena desde o final de semana Foto: MANAURE QUINTERO / REUTERS
Mulher usa máscara de proteção em shopping center vazio em Caracas. Cidade está em quarentena desde o final de semana Foto: MANAURE QUINTERO / REUTERS

A maior parte das sanções aplicadas à Venezuela é ligada à situação dos direitos humanos no país, focadas em pessoas e empresas estatais, além de medidas relacionadas a acusações de apoio a grupos terroristas e tráfico de drogas. Na prática, isso significa o bloqueio de bens em território e instituições americanas, além da possibilidade de sanções secundárias, o que impediria a aquisição de bens essenciais. Oficialmente, Washington diz que as medidas não se aplicam a itens médicos, uma visão compartilhada pelo presidente autoproclamado e líder oposicionista Juan Guaidó.

— A Venezuela é um dos países mais vulneráveis diante de um surgimento do coronavírus devido à emergência humanitária complexa que denunciamos por muitos anos — afirmou Guaidó, em vídeo publicado nas redes sociais. — Neste ponto, quero esclarecer que o setor da saúde não está atingido pelas sanções.

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Sem dinheiro e sem financiamento externo em vista, a situação já precária do sistema de saúde venezuelano pode se agravar ainda mais. Hoje, faltam medicamentos básicos, como antibióticos, e as instituições que podem receber os doentes estão sucateadas, reflexo também dos anos de depressão econômica. Para tentar frear o avanço dos casos, o governo ordenou uma quarentena na capital, Caracas, e em seis estados.

— Não devemos sair de casa, a não ser por motivos essenciais — afirmou Maduro no domingo. Dois dias antes, na sexta-feira, ele decretou estado de emergência, suspendendo ainda os voos para quase todos os países, à exceção de destinos na Turquia e Cuba. (Com agências internacionais)