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'Os cidadãos podem perder direitos após o coronavírus', diz epidemiologista americano

Jon Zelner afirma que a desigualdade social se reflete na exposição à Covid-19 para avanço sobre liberdades em nome da saúde geral
Jon Zelner: para epidemiologista, tratamento contra o coronavírus é desigual entre ricos e pobres Foto: Divulgação
Jon Zelner: para epidemiologista, tratamento contra o coronavírus é desigual entre ricos e pobres Foto: Divulgação

RIO — Em um momento em que os cientistas se confinam em laboratórios , em busca de uma vacina para o coronavírus , e médicos tentam dar conta dos doentes , Jon Zelner acompanha aqueles que não conseguem chegar aos hospitais .

O epidemiologista americano, professor-assistente da Escola de Saúde Pública da Universidade de Michigan (EUA), denuncia a desigualdade no atendimento e a estigmatização de doentes.

O cenário pós-coronavírus também o preocupa. Zelner teme que os governos, obcecados por evitar novas epidemias, recorram a políticas invasivas que usaram no combate à Covid-19 , como a instalação em massa de câmeras e até um sistema de vigilância por celular.

Por que pessoas com melhores condições financeiras têm mais chance de sobreviver à Covid-19?

Elas podem adaptar seu cotidiano para reduzir ao máximo o contato com o coronavírus. Trabalham no esquema home office , sem perder o emprego. Fazem compras sem ir ao mercado. Têm um bom plano de saúde e atendimento médico. Os mais pobres precisam recorrer ao hospital e não recebem informações sobre seu tratamento. Também são vítimas de preconceito, principalmente os negros. A pandemia é nova, mas a segregação no sistema de saúde segue o molde de outras doenças com as quais lidamos há tempos, como câncer ou problemas cardiovasculares.

A principal recomendação da OMS é a quarentena. Nas favelas brasileiras, muitos vivem juntos em barracos minúsculos onde nem a tuberculose foi erradicada. Como elas podem seguir as orientações que lhes protegeriam do coronavírus?

Esse é o problema mais difícil na contenção do vírus. As recomendações sanitárias funcionam bem se você tiver a capacidade de se isolar e viver em uma casa que permita minimizar seu contato com outros. Acredito que a única maneira de permitir que todos sigam as diretrizes da OMS é fornecer o suporte financeiro e de infraestrutura para isso e, mesmo assim, não sei se os moradores de comunidades estariam dispostos a deixar suas casas, mesmo que recebam os recursos necessários para sua proteção.

O presidente Jair Bolsonaro avalia que o “lockdown” impede a população de trabalhar, e isso aumentaria o desemprego e a miséria. Qual é a sua opinião?

Não existe escolha. Pedir às pessoas para cuidarem de seus negócios como se não houvesse pandemia resultaria em mais mortes e não resolveria problemas econômicos. Na verdade, quanto pior for a trajetória do coronavírus, piores serão as consequências econômicas e sociais a longo prazo.

É possível evitar o estigma de quem já foi infectado?

Requer uma compreensão da magnitude do desafio que enfrentamos. Um vírus é uma coisa minúscula, que não podemos ver, e as pessoas estão tendo muito trabalho para mantê-lo fora de suas casas e de seus organismos. No entanto, se esse esforço falha, não quer dizer que o infectado fez uma coisa errada. Algumas pessoas podem não ter recursos para se isolar da sociedade e cumprir quarentena. Portanto, estaríamos cometendo um grande erro atribuindo toda infecção às ações dos indivíduos. Em outras palavras, quando alguém fica doente com isso, temos que tratar todos com uma quantidade equivalente de compaixão e cuidado.

Em sua carreira como epidemiologista, você estudou a transmissão da tuberculose, da gripe e de patógenos ligados a doenças que provocam diarreia. Esperava ver um problema global e tão complexo como o coronavírus?

Não acho que alguém que trabalhe na minha área fique surpreso ao ver uma pandemia surgir e que isso envolva um patógeno respiratório viral. É mais uma questão de “quando” isso ocorrerá do que “se” ocorrerá. Infelizmente, a desigualdade que vemos sobre as vítimas do coronavírus, como a constatação de que os mais pobres equivalem à maioria dos infectados e mortos, também não é inédita. Espero que na próxima vez estejamos mais aptos para ver que a única maneira de combater com êxito uma pandemia é através de uma resposta unificada, tanto dentro de uma sociedade como entre países.

A sociedade pós-coronavírus, então, pode ser menos desigual?

Teremos, em todo o mundo, uma situação de perdas e ganhos. Os governos ficarão obcecados atrás de soluções contra novas pandemias. Mas algumas políticas podem ser implementadas junto com uma questionável intromissão à sociedade. A China, por exemplo, recorreu a softwares para monitorar seus cidadãos e impedi-los de violar a quarentena. Outros países usaram câmeras para esta mesma finalidade. Essa vigilância, que foi um bem valioso, continuará sendo usada de algum modo benéfico à população? Nós, americanos, abrimos mão de uma quantidade significativa de direitos e privacidade após atentados como o 11 de Setembro. O governo alegou que leis e políticas criadas a partir dali seriam usadas para nos prevenir do terrorismo, mas, na verdade, sua aplicação não se restringiu a isso. Temo que coisas semelhantes aconteçam agora. Os cidadãos podem perder direitos após o coronavírus.

O coronavírus dá sinais de arrefecimento em alguns países, como Espanha e Itália, e os governos esperam ter uma vacina contra o patógeno em um ano. Quais serão os próximos passos?

A luta contra essa doença e a desigualdade associada a ela ficará mais difícil quando os países conseguirem meios para controlar sua transmissão. Afinal, quando vacinas e antivirais estiverem disponíveis, quem os receberá primeiro? As pessoas que têm mais dinheiro para pagar por eles, mesmo tendo menor risco de contaminação? As pessoas mais vulneráveis à Covid-19, mesmo sendo pobres? A aplicação de testes será da mesma maneira entre os ricos e os marginalizados? São questões difíceis que elaboramos à medida que passa a pandemia, e temo que os governos que ignoram ou perseguem pobres e minorias raciais, religiosas e étnicas excluam essa camada da população de políticas de combate ao coronavírus.