Saúde Ciência

Enzima mutante criada por acaso é capaz de degradar garrafas PET

Descoberta pode criar solução de reciclagem sustentável para resolver um dos maiores problemas ambientais enfrentados pelo planeta

Sem descarte apropriado, as garrafas plásticas se acumulam em aterros e oceanos
Foto: FRED DUFOUR / AFP
Sem descarte apropriado, as garrafas plásticas se acumulam em aterros e oceanos Foto: FRED DUFOUR / AFP

PORTSMOUTH, Inglaterra

— A poluição por plástico é um dos maiores problemas ambientais do planeta, mas uma descoberta acidental pode ajudar a resolvê-lo. Uma equipe internacional de pesquisadores, liderada pela Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, e pelo Laboratório Nacional de Energia Renovável do Departamento de Energia americano, conseguiu criar uma enzima mutante capaz de degradar rapidamente o polietileno tereftalato, conhecido popularmente pela sigla PET, polímero termoplástico presente principalmente em tecidos e embalagens.

— Poucos poderiam prever quando os plásticos se tornaram populares, na década de 1960, que teríamos grandes manchas de lixo plástico boiando nos oceanos ou sendo levadas para praias antes imaculadas em todo o mundo — comentou John McGeehan, Diretor do Instituto de Ciências Biológicas e Biomédicas em Portsmouth. — Todos nós podemos desempenhar um papel significativo no lidar com o problema do plástico, mas a comunidade científica que criou esses ‘materiais maravilhosos’ agora deve usar toda a tecnologia à disposição para desenvolver soluções reais.

Criado na década de 1940, o PET não existia na natureza e, portanto, não era digerido por nenhum micro-organismo. Mas há dois anos, cientistas descobriram uma bactéria que evoluiu naturalmente numa usina de reciclagem de lixo no Japão que era capaz de decompor o material como fonte de alimento. Estudos identificaram a enzima responsável pela digestão do plástico, batizada como PETase. Intrigados, McGeehan e seus colegas começaram a investigar o funcionamento desta enzima, mas foram além.

O objetivo era analisar a estrutura tridimensional da enzima e, com essa informação, entender como ela funciona. Mas durante o estudo, de forma acidental, eles acabaram criando uma enzima mutante que é ainda mais eficiente na degradação do plástico que a PETase natural.

— A sorte muitas vezes desempenha papel importante em pesquisas científicas e nossa descoberta não é exceção — disse McGeehan. — Embora a melhora seja modesta, essa descoberta não prevista sugere que existe espaço para melhorar ainda mais estas enzimas, nos levando para mais perto de uma solução de reciclagem para a montanha crescente de plásticos descartados.


O professor John McGeehan utilizou o Diamond Light Source para identificar a estrutura da PETase
Foto: STAFF / REUTERS
O professor John McGeehan utilizou o Diamond Light Source para identificar a estrutura da PETase Foto: STAFF / REUTERS

Para determinar a estrutura da enzima, os cientistas utilizaram o poderoso Diamond Light Source, um acelerador de partículas que usa raios-X de alta intensidade, 10 bilhões de vezes mais brilhantes que o Sol. O equipamento funciona como um microscópio com capacidade suficiente para observar átomos individualmente. Com essa informação, os pesquisadores criaram um modelo tridimensional de alta definição da PETase.

Com a ajuda de cientistas de modelação computacional da Universidade do Sul da Flórida, nos EUA, e da brasileira Unicamp, os cientistas descobriram que a PETase se parece com a cutinase — enzima produzida naturalmente por fungos de plantas —, mas com algumas características incomuns, incluindo a abertura do sítio ativo (região onde as reações químicas acontecem) maior, capaz de acomodar polímeros produzidos pelo homem em vez de polímeros naturais.

PROCESSO INDUSTRIAL PARA A RECICLAGEM

Essa diferença indicava que a PETase poderia ser uma evolução da cutinase ocorrida na usina de reciclagem japonesa, onde o PET era abundante. Para testar a hipótese, os pesquisadores provocaram uma mutação no sítio ativo da PETase, para torná-la mais parecida com a cutinase. Foi aí que o inesperado aconteceu: a PETase mutante, que deveria ser mais parecida com a cutinase, se mostrou mais eficiente que a PETase natural na degradação do PET. Além disso, ela também se tornou capaz de degradar o polietileno furanodicarboxilato (PEF), apontado como o substituto do PET por ser produzido a partir de fontes renováveis.

— O que nós descobrimos é que a evolução da bactéria ainda não estava completa, havia espaço para melhorias. Ao longo dos anos, as bactérias capazes de se alimentarem de plástico levaram vantagem e passaram essa característica de geração em geração, mas como o PET surgiu na década de 1940, a evolução é recente — explicou o professor Munir Salomão Skaf, do Instituto de Química da Unicamp e coautor da pesquisa. — E conseguimos fazer mutações nessa enzima para torná-la ainda mais eficiente. Em geral, isso é muito difícil, porque na natureza tudo está funcionando da melhor forma. Mas como o processo evolutivo não está completo, o homem pode intervir e melhorar a natureza.

Descartada no ambiente, uma garrafa PET leva 300 anos para se decompor. Com a nova enzima, o processo leva apenas 96 horas e a decomposição resulta em subprodutos que podem ser aproveitados economicamente. O uso de enzimas na indústria é corriqueiro em diversos setores, seja na produção de biocombustíveis ou na fermentação do pão e da cerveja. Portanto, o processo industrial para reaproveitamento dos subprodutos do PET pode ser viável.

— A produção de enzimas é relativamente simples — disse Skaf. — E o PET não precisa de tratamento especial: é só triturar, jogar num contêiner com as enzimas e esperar. O processo industrial não está pronto, mas nós sabemos o caminho.

Douglas Kell, professor de Ciência Bioanalítica na Universidade de Manchester, não envolvido na pesquisa, ressalta que plásticos derivados do petróleo, como o PET, são resistentes à degradação e sua acumulação se transformou num dos maiores problemas ambientais que enfrentamos. De acordo com estimativa divulgada ano passado pelo jornal “Guardian”, a Humanidade consome um milhão de garrafas plásticas por minuto. Mas em 2016, apenas metade delas foram coletadas e apenas 7% foram recicladas em novas garrafas. A maior parte foi para aterros sanitários ou descartada no ambiente.

— O organismo que produz uma enzima capaz de degradar o PET foi descoberta em 2016, mas sua atividade é muito lenta — analisou Kell. — Neste trabalho, uma estrutura em alta resolução foi obtida e ela mostra duas mudanças racionais no design do sítio ativo da enzima que serviram para melhorar suas propriedades. É um avanço importante e novas rodadas de evolução podem melhorar ainda mais a enzima.

Mas Skaf ressalta que não se trata da solução para acabar com a poluição por plástico no planeta, mas apenas uma das abordagens para lidar com o problema.

— O ponto mais importante é a diminuição da produção de plástico, o consumo consciente — receitou o pesquisador da Unicamp. — Problemas complexos não são resolvidos com apenas uma solução, mas com estratégias multifacetadas. A nossa enzima é uma das frentes, que contribui para a remoção do plástico no ambiente e o seu reaproveitamento econômico.