Exclusivo para Assinantes
Rio

Em comunidades do Rio, salto no número de infecções por Covid-19 ultrapassa o dobro da média da cidade

Segundo dados extraídos do painel da prefeitura, enquanto o aumento nas favelas foi de 105,3% em março em comparação com os 31 dias anteriores, no município como um todo, o crescimento foi de 45,5%
Testagem em massa para moradores da Maré Foto: FABIANO ROCHA / Agência O Globo
Testagem em massa para moradores da Maré Foto: FABIANO ROCHA / Agência O Globo

RIO — A demanda crescente no centro de testagem da Maré e o movimento de ambulâncias na UPA do Complexo do Alemão são consequências evidentes. Nesta nova escalada da Covid-19 no Rio, nos dez bairros onde os moradores vivem predominantemente em favelas, o salto nas notificações da doença foi mais que o dobro do registrado na média da cidade. Segundo dados extraídos do painel da prefeitura, o aumento foi de 105,3% em março deste ano em comparação com o período de 31 dias imediatamente anteriores. Enquanto isso, no município como um todo, em estado de alerta, o crescimento foi de 45,5%. Apesar da diferença significativa, o detalhamento dos números revela ainda o que ONGs e lideranças locais advertem há mais de um ano: a real dimensão da pandemia nas comunidades continua mascarada, sobretudo, pela escassez de exames para detectar o coronavírus.

Covid-19: Eduardo Paes negocia a compra de 8 milhões de doses da Sputnik para o Rio

Em Acari, Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Gardênia Azul, Jacarezinho, Mangueira, Manguinhos, Maré, Rocinha e Vidigal, foram 702 casos notificados mês passado, contra 342 entre 29 de janeiro e 28 de fevereiro. Apenas o Complexo da Maré respondeu por 43,7% (307) do total. O que pode indicar o quanto de subnotificação há nas outras comunidades, uma vez que o conjunto de favelas da Zona Norte do Rio é o único com um programa estruturado de testagem dos moradores, numa ação que abrange também o Complexo de Manguinhos.

Escassez de insumos : Hospitais do Rio já começam a ter escassez de insumos para tratamento, relatam profissionais

Modelo de ação

A iniciativa, que ajuda a traçar um quadro mais fiel da pandemia nesses dois territórios, integra o projeto Conexão Saúde — De Olho no Corona, que reúne instituições como Redes da Maré, Fiocruz, Dados do Bem e SAS Brasil, entre outras, em uma das mobilizações da sociedade civil que têm coberto o vácuo de políticas públicas para o enfrentamento da doença nas comunidades. No centro de testagem montado próximo à Avenida Brasil, a capacidade é de 120 exames PCR por dia, além de testes rápidos sorológicos. Quantidade que tem se esgotado rapidamente nas últimas semanas.

Leitos de UTI: Pedidos de vagas de UTI via Defensoria disparam e chegam até mesmo a delegacia

— Hoje (terça-feira passada), acabaram ao meio-dia. A demanda cresceu, e têm chegado de adolescentes a idosos, muitos com sintomas ou que tiveram contato com pessoas doentes — conta Everton Pereira da Silva, um dos coordenadores da testagem.

As amostras colhidas ali e em tendas móveis são analisadas pela Fiocruz, com resultados que alimentam também boletins quinzenais sobre a Covid na região. O mais recente ratifica a preocupante aceleração da doença: no período de 9 a 22 de março, o número de novos casos na Maré (132) foi 144% superior ao das duas semanas anteriores, entre 23 de fevereiro e 8 de março (54). Em Manguinhos, a curva é a mesma. Foram 33 casos, mais de quatro vezes os seis infectados do período anterior.

Cria da Rocinha : Sommelier premiado, que cresceu na Rocinha, doa mil cestas básicas na comunidade

Tem crescido ainda o número de famílias que recorrem a outro serviço do Conexão Saúde: o Isolamento Seguro, que busca dar condições adequadas para pessoas com o coronavírus cumprirem a quarentena. Na semana passada, eram 38 famílias atendidas, chegando a 200 no mês. Entre elas estava a de Pâmela Carvalho, de 28 anos, que recebeu o diagnóstico positivo quando se preparava para distribuir cestas básicas na comunidade, no último fim de semana.

— A primeira reação foi um desespero, como medo de ter infectado outras pessoas. Depois, comecei a sentir dores nas costas, prostração, tosse e coceira pelo corpo — conta ela, que imediatamente procurou o Conexão Saúde. — Logo uma enfermeira e uma assistente social me ligaram. Além disso, recebi um guia de como fazer o isolamento, tive atendimento médico por telemedicina e ganhei kits de limpeza e higiene. Para não precisar cozinhar, diariamente também é entregue na minha casa café da manhã, almoço e jantar. Tem sido uma ajuda fundamental. Meu companheiro testou e deu negativo.

Jovens contaminantes: 'Passei Covid para minha mãe e meu irmão. O sentimento de culpa bateu forte'

Coordenador do Isolamento Seguro, Henrique Gomes explica o impacto das medidas num espaço de favela.

— Buscamos entender as dificuldades dos moradores para fazer o isolamento. Muitas vezes, as casas têm poucos cômodos, e os moradores dependem do trabalho diário para se sustentar — diz Henrique, lembrando que o repique da Covid-19 veio num momento de hiato no auxílio emergencial do governo federal, levando a Redes a intensificar novamente a campanha de arrecadação para a distribuição de cestas básicas.

Pandemia: fila de UTI bate novo recorde e algumas cidades têm mais gente internada que a capacidade dos hospitais

Números x realidade

Em outras comunidades, até o monitoramento dos casos e óbitos, muitas vezes, continua sendo feito por organizações da sociedade. É o caso do Painel Unificador de Covid-19 nas Favelas, uma iniciativa de ONGs como a Rio On Watch e da Fiocruz, que tenta dar um panorama da situação em 230 comunidades do Rio e da Baixada. A metodologia inclui relatórios locais, painéis como o da Voz das Comunidades e dados dos CEPs dos infectados divulgados pela prefeitura. Nas comunidades mapeadas, já são 33.921 casos e 3.593 óbitos pela Covid.

Hospital do Riocentro: Auditoria encontra irregularidades do Hospital de Campanha do Riocentro, que teve a maior taxa de mortalidade das unidades provisórias da cidade

No Complexo do Alemão, por exemplo, até 23 de março, no Painel Unificador, tinham sido registrados 1.388 casos e 94 mortes pela doença. Nos dados oficiais da prefeitura, até a última quarta-feira, havia 266 infectados e 54 óbitos. E, de acordo com a pesquisadora Renata Gracie, do ICICT/Fiocruz e integrante do Painel Unificador, os obstáculos no acesso à assistência de saúde e à testagem não são os únicos motivos para essas diferenças que escamoteiam a realidade do coronavírus nas favelas.

— Os endereços dos domicílios em favela também são mais difíceis de georreferenciar devido à estruturação das ruas e à ausência de informação nos parâmetros do restante das áreas urbanas mais consolidadas. Mais de 50% dos endereços em favela não possuem informações de CEP. Os endereços fornecidos em alguns casos são de comércios próximos às favelas e de associação de moradores, muitas vezes, fora das delimitações de favelas — ressalta.

Falta de leitos : Carência de leitos de UTI na Baixada Fluminense pode explicar recorde de ocupação de vagas no Rio

Na vida real, onde também é mais difícil conter aglomerações, profissionais de saúde de UPAs como a da Rocinha e da Cidade de Deus temem não dar mais conta da demanda. Em Manguinhos, com a UPA fechada há quase três meses, foi preciso montar uma sala de oxigenação na Clínica da Família. E no Alemão, a média de 30 pessoas que buscavam testes na Clínica da Família Zilda Arns algumas semanas atrás, segundo funcionários, agora não fica abaixo de 100. Na última segunda, houve um pico de 157.

À UPA local também não para de chegar gente. Na terça-feira, Maria de Fátima Albuquerque Manhães, de 63 anos, levou o filho, de 27, com dores nas costas e na garganta, a ponto de quase não conseguir falar. O temor era pela evolução do quadro do filho e pela sua própria saúde.

— Tenho medo de adoecer agora, quando estou prestes a me vacinar — dizia ela, em frente à UPA, de máscara e um frasco de álcool em gel na mão.