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'Sem velório, é mais difícil materializar a perda', diz psiquiatra sobre o luto da Covid-19

Especialista da Unicamp explica que rituais funerários ajudam a concretizar a morte e sugere a busca de formas pessoais de homenagem para atravessar o luto
Enterro no cemitério Vila Formosa, na zona leste de São Paulo. Foto: Caio Guatelli / Agência O Globo
Enterro no cemitério Vila Formosa, na zona leste de São Paulo. Foto: Caio Guatelli / Agência O Globo

RIO — Ao longo de 2020, Clarissa de Rosalmeida Dantas esteve à frente do Serviço de Apoio Emocional aos Pacientes com Covid-19 e seus Familiares, o Apem-Covid, criado no início da pandemia no Hospital de Clínicas da Unicamp. Com outros psiquiatras e residentes, Dantas atendeu na maioria das vezes pessoas que perderam seus entes queridos. Alguns relatos foram compilados para um artigo sobre o luto na pandemia, publicado pela Revista Latinoamericana de Psicopatologia.

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O trabalho mostra como o sofrimento da perda é agravado diante da impossibilidade de visitar os familiares internados e, depois, da morte sem um velório. Sem a chance de se despedir de seus entes queridos, muitos dos atendidos pelo serviço no hospital criavam "fantasias acerca da troca de corpos, ou mesmo a ideia de que a morte de seu familiar havia sido erroneamente comunicada, sentimento que é acentuado pelo cenário político de negação da pandemia", como escrevem os autores do artigo.

Clarissa Dantas explica que o distanciamento imposto desde a internação já compromete o processo do chamado pré-luto, quando é possível, de alguma forma, se preparar para a perda. O processo fica ainda pior com a impossibilidade dos funerais, "rituais da nossa cultura que ajudam a assimilar uma passagem difícil". A psiquiatra propõe que enlutados ativem suas redes de afetos para compartilhar memórias e que busquem criar rituais simbólicos individuais como forma de assimilar a perda.

Familiares e amigos de pacientes vítimas da Covid-19 já deixam de ver seus entes queridos no momento da internação. Como isso impacta no luto?

Existe o conceito de pré-luto, algo como uma antecipação do que está para acontecer. Já existe um sofrimento mental antes mesmo de a pessoa falecer. É um processo de se dar conta do que está acontecendo, de perceber que as possibilidades de cura estão se esgotando, de ter uma percepção de que a pessoa está sofrendo. Isso permite que a pessoa comece a assimilar a ideia da morte. O que a gente observou é que, pelo fato de não poder ver como está a pessoa, muitos familiares tinham na memória a imagem de seu ente querido como ele chegou no hospital, uma imagem incompatível com a morte. Ou seja, não foi possível acompanhar visualmente o processo de deterioração do estado clínico. Isso dificulta o luto. Apesar de não ser uma morte súbita, como num acidente, acaba por ter esse efeito para a pessoa que fica, porque ela não materializou a perda.

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Qual é a importância do funeral nesse processo?

Os rituais funerários são uma marca da cultura ocidental, ajudam a assimilar uma passagem difícil. Nos rituais funerários de um modo geral, existe um aspecto coletivo que é muito importante e que foi perdido com a pandemia. O compartilhamento da dor, o reconhecimento social da perda, o respeito social não só ao falecido, mas à família enlutada, tudo isso é manifestado no funeral. As pessoas vão, se abraçam, oferecem condolências. Isso tudo ficou perdido agora.

Esses rituais são mecanismos de assimilação da perda e, de alguma forma, permitem que a vida prossiga. Isso fica prejudicado com a súbita impossibilidade. Somos forçados a uma mudança de atitude radical e imediata. Esses rituais mudam ao longo de séculos e, de repente, em março do ano passado, não podia ser mais do jeito que era. Existem diferenças regionais nos funerais, é claro, mas em todas elas está a presença do corpo. Sem velório, é mais difícil materializar a perda. A falta do funeral e da possibilidade de ver o corpo dá ao luto um sentimento de irrealidade, que já existe numa situação de perda, mas é muito agravado pela impossibilidade de ver o corpo. Os familiares tornam-se prisioneiros da ambiguidade.

Quais as implicações disso para o processo do luto?

O corpo dá uma materialidade para a morte, incorpora a despedida, a última homenagem. Não ver o corpo implica numa dificuldade de realizar o processo do luto, a assimilação da perda, o processo de sobreviver à perda e de reconstituir os laços com o falecido. Existe um paralelo com os desaparecidos políticos da ditadura. O desaparecido torna-se uma figura envolta por uma penumbra, não está morto, tampouco está vivo. Está sempre presente e ausente. É como se fosse negada à família a certeza da morte. A última despedida, a última homenagem, a reunião em torno do corpo pela última vez, tudo isso dá materialidade à morte. Prestar a homenagem é importante para quem fica, dá a sensação de dever cumprido. Sem isso, muitas famílias se sentiam como se estivessem abandonando a pessoa que morreu.

Muitas pessoas fantasiam como seria o próprio velório, as pessoas que estariam presentes, ou até mesmo deixam orientações para as famílias. Como é isso para quem fica?

Existe uma quebra de ideal em torno da morte. Muita gente faz determinações, que escolhe roupa, especifica como quer que seja o próprio funeral. Isso fica rompido, de fato. Tivemos um relato no serviço do Hospital de Clínicas em que a pessoa lembrava que seu familiar queria ser enterrado com a camiseta do Santos. É um simbolismo para aquela pessoa, algo que não pode ser cumprido.

Sem essa possibilidade e sem os velórios, o que se pode fazer para ajudar no processo de assimilação da perda?

Existem formas pessoais, em geral, envolvendo algo simbólico, a realização de um outro ritual que não era aquele que nossa cultura prescreve, mas que pode ser criado para ajudar na assimilação da perda. Tivemos uma família, por exemplo, que colou uma foto da pessoa que perdeu no caixão lacrado. Objetos, fotos, é possível usar algo que simbolize a presença da pessoa, já que não é possível ter o corpo. Compartilhar memórias também é um caminho. E buscar a rede de afetos sempre.