Brasil

‘A prática da telemedicina é um ato médico complementar’, diz Donizetti Dimer Giamberardino Filho

Vice-presidente do Conselho Federal de Medicina diz que prática pode facilitar transferência de conhecimento e evitar grandes deslocamentos, mas o padrão da profissão sempre será o atendimento presencial
Donizetti Giamberardino, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina Foto: Divulgação
Donizetti Giamberardino, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina Foto: Divulgação

Até março deste ano, o que regia a telemedicina no Brasil era uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que data de 2002. O texto não previa a consulta à distância, seguindo o Código de Ética Médica, que veta a prescrição sem exame físico do paciente. A antiga resolução, porém, perdeu valor tão logo o Ministério da Saúde publicou, no início da pandemia do coronavírus, uma portaria ampliando as possibilidades da prática. Dias depois, o presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei liberando a telemedicina no país em caráter provisório, durante a pandemia. A medida tem como objetivo evitar que pacientes não graves circulem por unidades de saúde, quebrando o isolamento social necessário para reduzir a propagação da Covid-19.

Vice-presidente do CFM, Donizetti Dimer Giamberardino Filho diz que o coronavírus “foi um fator disruptivo na telemedicina, porque, de forma abrupta, nos obrigou a aceitar (a prática)”. Ele explica que o conselho chegou a aprovar uma resolução nova em 2018. O texto, no entanto, “não foi bem aceito” pela classe médica e acabou revogado no ano seguinte. O CFM, então, abriu o tema para consulta pública e, quando analisava as mais de mil contribuições recebidas, veio a pandemia — e “a ironia é que muitos médicos que eram totalmente contra a telemedicina hoje a têm como base de seu exercício”, diz.

Leia também: Isolamento social estimula atendimento médico à distância

O vice-presidente do conselho conta que o órgão prepara nova resolução para regulamentar a prática no país depois da pandemia e defende que “a telemedicina não é uma outra medicina, é simplesmente uma forma de facilitar o acesso à saúde”.

Até a publicação da portaria pelo Ministério da Saúde e da sanção da lei pelo presidente, autorizando a telemedicina durante a pandemia, só havia uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o tema, de 2002. O CFM já discutia uma atualização?

A telemedicina é discutida há bastante tempo pelo CFM, tanto que temos uma resolução de 2002, atualizada em 2018. Essa atualização, porém, foi revogada. O texto tem muitos detalhes sobre a preservação da privacidade de dados e o prontuário do paciente, já que todo ato médico — e a telemedicina deve ser considerada um ato médico — precisa ter um registro. Esse prontuário é algo muito importante para o exercício da profissão porque nele estão as informações do paciente. Cabe ao médico ou à instituição a guarda desse documento. Há uma grande preocupação do CFM neste sentido. O conselho tem muitas resoluções, e o próprio Código de Ética diz que é vetada ao médico a prescrição sem exame físico do paciente. Esse artigo, de certa forma, vetava a consulta à distância. Em função das novas tecnologias, discutiu-se muito em 2018 uma proposta de atualização.

Por que essa proposta foi aprovada e depois revogada?

Ela teve muita repercussão negativa na classe médica, e isso culminou com uma revogação em fevereiro de 2019. Durante o ano de 2019, então, o CFM estabeleceu dois prazos para consultas públicas, para que os médicos, individualmente ou por meio de sociedades médicas e conselhos regionais, fornecessem contribuições. Foram muitas, mais de mil. Tivemos eleição dos membros do CFM em outubro e houve o planejamento para que, no primeiro semestre deste ano, publicássemos uma resolução nova. Veio a pandemia, e o governo decretou estado de emergência. Então o conselho fez uma nota técnica em março, que autorizava a teleorientação e a teleconsulta em função da Covid-19. Neste momento, a telemedicina tornou-se muito relevante. Logo em seguida vieram a portaria do Ministério da Saúde e a lei, autorizando a prática em caráter transitório e excepcional.

A pandemia acelerou o processo?

Esse vírus foi um fator disruptivo na telemedicina, porque, de forma abrupta, nos obrigou a aceitar (a prática). A ironia é que muitos médicos que eram totalmente contra a telemedicina hoje a têm como base de seu exercício. Toda preocupação do CFM nunca foi o corporativismo, mas a segurança do ato médico e da sociedade. Toda cautela visa à segurança.

A lei tem caráter provisório, vigora somente durante a pandemia. Quando ela for revogada, o CFM planeja retomar a discussão de uma nova resolução para a telemedicina?

Tem uma comissão já estudando isso. Estamos vendo quais são os erros, os acertos, qual é a perspectiva da sociedade. A nova resolução que pretendemos fazer quando a lei terminar tem alguns princípios que já conhecemos.

Quais seriam esses princípios?

O primeiro grande princípio seria a relevância da relação médico-paciente. O principal valor da profissão é essa relação, e é só por meio dela que você estabelece a necessária confiança. Isso é fundamental para o exercício da medicina. O padrão de ouro da nossa profissão é o atendimento presencial. A telemedicina tem que vir como uma tecnologia, visando principalmente ao acesso. Pode, por exemplo, transferir conhecimentos entre centros médicos, ou ainda evitar deslocamento de pessoas que viajam 400 quilômetros só para ter uma receita. São coisas que podem ajudar a melhorar o sistema de saúde coletivo, o próprio SUS.

E mais: Presidente da Fiocruz diz que Brasil 'assumiu um risco' para ter uma vacina contra o coronavírus

E para as clínicas privadas?

O aspecto que mais se discutiu na época da revogação foi o dos consultórios privados, que, na realidade, representam um pequeno percentual do exercício da medicina no país. Três quartos da população brasileira são atendidos pelo sistema público de saúde, e um quarto, ou seja, cerca de 50 milhões, pelo sistema suplementar (planos e seguros privados de saúde). Quantos desses consultam médico particular? São poucos, não mais de dez milhões de pessoas. Mas, como método propedêutico, a intenção é que a telemedicina venha trazer acesso, conhecimento e, assim, qualificar o atendimento e racionalizar o uso de recursos, e isso não deve substituir a figura do médico presencial. É equivocado achar que teremos menos médicos, porque seriam substituídos pelo atendimento à distância. A telemedicina não é uma outra medicina, é simplesmente uma forma de facilitar o acesso à saúde.

O senhor já disse que existem limitações no atendimento por telemedicina. Quais são elas?

Toda medicina se divide entre o exame físico e, antes, uma entrevista, que é uma comunicação verbal e não verbal. O médico tem treinamento para ver, desde que o paciente entra no consultório, como ele anda, que tipo de autocuidado ele dedica ao seu corpo. São muitos detalhes para que se possa fazer uma hipótese diagnóstica. Com os relatos, o médico fica sem a parte do exame físico, sem a apalpação, a ausculta. Mesmo que tenha algumas ferramentas, o exame nunca é completo. Por esse motivo, a recomendação é que a primeira consulta seja presencial, porque você já tem seu médico, que já te conhece. Aí entra o princípio da busca da segurança. Por isso a nova resolução autoriza a teleconsulta após uma primeira consulta presencial.

Se, por um lado, existe um temor de que a telemedicina pode despersonalizar o atendimento e a relação médico-paciente, por outro lado, ela pode ser útil para melhorar o acesso à saúde em lugares remotos. Como garantir que cumpra essa função sem prejudicar os princípios da profissão?

Temos que ter muito cuidado com a impessoalidade. Existe um artigo muito antigo em resoluções do CFM que me parece simples e de muita relevância: todo paciente tem direito a um médico. Em casos de pacientes atendidos por equipes, por exemplo, perde-se a continuidade do atendimento, e isso não é bom. Então, preconiza-se que o médico acompanhe o paciente depois do diagnóstico. Brinco sempre que o remédio confiança é tão importante quanto qualquer remédio químico. Muitas pessoas precisam muito mais de um bom diálogo do que de um remédio. Gerar procedimentos de impessoalidade não é desejável. A medicina não é um produto a ser colocado na prateleira. Se for assim, você admite que qualquer programa de inteligência artificial vai substituir o médico. Isso é outra coisa. A história da medicina de cinco mil anos passa muito pela frase famosa da ciência e arte: é a ciência do conhecimento e a arte da relação entre pessoas. A prática da telemedicina é um ato médico complementar.