• Salmo Raskin*
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Artigo Salmo Raskin (Foto: Getty Images)

 (Foto: Getty Images)

Catapultada pelos impressionantes avanços de ciência de dados, inteligência artificial, aprendizado automático (“machine learning”) e automação, a biotecnologia parece ilimitada quando analisamos seus potenciais usos no futuro. Estes avanços estão trazendo à realidade uma nova onda de inovação, com o potencial de revolucionar da saúde e agricultura aos bens de consumo e energia.

Espera-se, em curto espaço de tempo, um ganho efetivo na capacidade de recombinar o material genético de organismos de diferentes espécies, desenvolver vacinas em ritmo dez vezes mais rápido do que as tradicionais, examinar o genoma humano em poucos dias e a baixo custo, editar os gens vislumbrando efetivamente a cura de doenças historicamente incuráveis, desenvolver tecidos para reverter degenerações, criar biomáquinas e biocomputadores, produzir alimentos sem a necessidade de sacrificar animais, criar materiais sintéticos por “fábricas” de bactérias e fungos... Enfim, uma lista interminável de benefícios com real capacidade de transformar o mundo da maneira com atualmente o concebemos.
Obstáculos técnicos sempre existirão, claro, mas pela primeira vez na história da humanidade começa a ficar claro que o maior desafio da biotecnologia no futuro não será mais a “tecnologia”, mas sim a “bio”. Entre os maiores desafios da biotecnologia estão:

Valorização da privacidade dos dados pessoais

Justamente em um mundo onde cada vez mais prevalece o “big data” é que o cidadão comum compreende melhor que o que ele tem de mais valioso é aquilo que o torna único. E, ao valorizar este aspecto, começa a agir contra o uso de seus dados mais íntimos sem a sua permissão. Cada vez mais a biotecnologia permitirá o acesso fácil, rápido e barato a informações que podem ser transferidas para o outro lado do planeta em segundos, contendo o que temos de mais único, os dados sobre o nosso genoma. Já há uma reação da sociedade contra isso — basta mencionar a recente aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. No futuro, mais do que hoje, serão fundamentais os termos de consentimento dos alvos dos produtos biotecnológicos. Quando e como estes indivíduos darão (ou não) consentimento, serão temas fundamentais nas próximas décadas;

Respeito aos preceitos da ética

Talvez o maior de todos os obstáculos para o avanço da biotecnologia seja a questão ética. Será que realmente queremos este ou aquele avanço? Será que o interesse individual vai se sobrepor ao coletivo? Como lidar com as diferenças culturais profundas, entre países e religiões, em um mundo globalizado? Por quem e como será feita a fiscalização ética dos avanços? Um exemplo do obstáculo ético se concentra no campo dos testes genéticos. Os recentes avanços permitem que não apenas a determinação de predisposição a doenças seja feita com grande eficácia, mas também a capacidade de prever traços físicos e comportamentais. Estaria a biotecnologia transformando a eugenia em realidade e commodity? Seria ético investir neste tipo de pesquisa? Bioética e biotecnologia obrigatoriamente terão de andar de mãos dadas;

Como lidar com a lentidão e rigidez dos processos regulatórios e legais

Via de regra, os avanços da biotecnologia acontecem em velocidade de progressão geométrica, enquanto os respectivos avanços legais caminham em velocidade de progressão aritmética. Esse descompasso quase intransponível entre a Ciência e o Direito será cada vez mais um obstáculo para o rápido avanço da biotecnologia.

Os mais liberais poderiam argumentar que leis só fazem frear o avanço da biotecnologia, mas certamente a ausência de legislações claras e transparentes tem também um efeito devastador às inovações, pois pode dar origem a casuísmos, a todo tipo de interpretações legais e trazer, como consequência, a insegurança jurídica. O contrário também é verdadeiro. Processos regulatórios muito rígidos são igualmente um obstáculo. Um exemplo são as diferentes leis sobre patenteamento, que mudam de país para país, um entrave ao desenvolvimento biotecnológico num mundo “globalizado”;

Como ser transparente sem abrir mão dos segredos industriais e das propriedades intelectuais

Cada vez mais a sociedade exige a transparência em todas as etapas de desenvolvimento de um produto biotecnológico. O exemplo mais atual ocorre em relação ao processo de desenvolvimento das vacinas para covid-19. Já na etapa final de desenvolvimento, a poucos meses da comercialização, algumas indústrias farmacêuticas estão sendo fortemente criticadas por não dar transparência aos processos de pesquisa, como o relato minucioso de efeitos adversos das vacinas, detalhes sobre sua segurança e efetividade, assim como quais são os critérios que utilizarão para encerrar as etapas de pesquisa. Transparecer os “meios” será, no futuro, tão importante quanto demonstrar os “fins”. Equalizar estas duas necessidades será um grande desafio;

Respeito à diversidade religiosa, de gênero, étnica, cultural e histórica

Um bom exemplo de limitações que aspectos religiosos podem impor ao avanço da biotecnologia ocorreu quando as pesquisas com células-tronco embrionárias tiveram grande avanço. A conquista biotecnológica tocava na delicada definição de quando a vida se inicia, qual o status do embrião e do feto, aspectos que estão longe da unanimidade e são bastante influenciados pela religião. Por um lado, havia grande expectativa de benefícios do uso das células-tronco oriundas do embrião, com potencial capacidade de regeneração de vários tecidos. Por outro, a tecnologia implicava na destruição dos embriões, o que vai frontalmente contra paradigmas de diversas religiões. O respeito às diferenças religiosas, étnicas, de gênero, culturais e históricas é direito recentemente adquirido e do qual dificilmente a sociedade vai se desfazer. Equilibrar os avanços biotecnológicos com as mudanças sociais será um grande desafio, que exigirá diálogo multidisciplinar e amplo envolvimento da sociedade;

Equidade de acesso às inovacões 

Tecnologias absolutamente fantásticas do ponto de vista biotecnológico podem não ter o impacto desejado se não diminuirmos as desigualdades sociais. De que adianta desenvolver um ótimo medicamento para evitar a doença de Alzheimer se o preço for inacessível a cidadãos e até a governos? Hoje já temos alguns medicamentos com altíssima eficiência e segurança, para vencer desde certos tipos de câncer até doenças raras, mas muitos deles a um preço exorbitante. Outro exemplo, ainda mais simples, de como gigantescos investimentos em tecnologia podem esbarrar em falta de infraestrutura básica é o que estamos vivendo neste momento em relação a vacinas para a covid-19. Uma das mais promissoras provavelmente já estará disponível nos próximos meses. Porém, essa vacina precisa ser transportada e estocada a uma temperatura de menos 70 graus Celsius. Quantos países poderão dela se beneficiar, frente a uma necessidade dessas? Os postos de saúde do Brasil não dispõem de freezers para manter a segurança e a efetividade da vacina. Muito provavelmente só os mais privilegiados terão acesso.

Todos esses desafios exigem que a biotecnologia passe a ser não somente um domínio dos profissionais da saúde, da agricultura, da química e da bioinformática, mas sim um espaço bem mais amplo, onde caibam especialistas em Direito, bioética e políticas públicas, assim como representantes das sociedades que serão o alvo desses produtos. Essa mudança de conceito e o aprendizado de trabalhar em equipes multiprofissionais e multidisciplinares pode ser justamente o maior desafio da biotecnologia do futuro, principalmente porque é fundamental o envolvimento de vários países, com suas diferentes peculiaridades. Mas certamente é a única maneira de transformar o gigantesco potencial da biotecnologia em uma realidade justa e útil para o planeta.

*Salmo Raskin é médico pediatra, geneticista, membro da Sociedade Brasileira de Genética Médica e diretor científico do Departamento de Genética da Sociedade Brasileira de Pediatria