RIO — Não bastasse uma virose que o tinha deixado de cama, Paulo Neves, de 42 anos, ainda estava preocupado com o pai. O aposentado Justino Mendonça estava com Covid-19 há dois dias, e o hospital da cidade, em Novo Aripuanã, no interior do Amazonas, não tinha leitos de tratamento intensivo do SUS para atender pacientes como ele — o mais próximo estava a quase 1.400 km. Naquela tarde, em 4 de maio, Neves recebeu uma ligação da sobrinha: “O vovô morreu”. Mendonça faleceu dois dias antes de completar 80 anos e enquanto esperava um avião para levá-lo a Manaus.
— A situação é ruim, tem só um hospital na cidade, e mistura quem tem coronavírus e quem está com outros problemas — contou Neves no mesmo dia em que o teste de sua esposa deu positivo para Covid-19 e que a cidade de 25 mil habitantes registrou o quarto óbito.
Novo Aripuanã é a cidade mais distante de um leito de UTI por vias terrestres. É necessário encarar 21 horas para chegar a uma unidade de saúde pública, em Manaus. E esse cenário não é a exceção. Levantamento feito pelo GLOBO com base em dados do Ministério da Saúde e do Google mostra que 14,3 milhões de pessoas estão a pelo menos duas horas, de carro, da UTI adulto do SUS mais próxima.
Outros dois milhões, distribuídos em 77 cidades, não conseguem nem chegar a uma unidade de saúde pública por vias terrestres. Eles precisam encarar viagens de barco que podem durar cinco dias, ou de avião. Para 40 milhões de brasileiros, em torno de 20% da população do país, é preciso viajar pelo menos uma hora até uma UTI pública.
Especialistas afirmam que os municípios deveriam pensar em medidas integradas de isolamento e atendimento em rede, a partir dos novos fluxos de pacientes entre regiões. Até domingo, 67% dos municípios já contavam com pelo menos um caso confirmado do vírus. Entre as cidades menores, 11 novos municípios confirmam casos a cada dia.
— Medidas unilaterais não levam em conta a rede de atendimento. O sistema está dentro de uma rede. Os prefeitos tem que conversar. Não dá para uma cidade fazer lockwdown e a outra não — afirma Diego Xavier, epidemiologista da Fiocruz.
Governadores têm mobilizado esforços na tentativa de dar suporte à demanda, com fornecimento de equipamentos, criação de leitos e ampliação do serviço de transporte, até mesmo por vias aéreas. Enquanto no Sudeste e no Sul os pólos de saúde estão mais distribuídos espacialmente, a situação é preocupante no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Em abril, o país contava com 478 cidades com leitos de UTI adulto do SUS, próprios para o tratamento grave da doença.
Sem um hospital próximo, infectados podem não buscar atendimento, correndo o risco de espalhar a infecção e de morrer. E nem sempre estar próximo a uma unidade de saúde é sinônimo de que haverá atendimento, diante da demanda crescente. Em Santo Antônio do Içá, no Alto Rio Solimões, parte dos 21 mil habitantes vive entre a esperança conjugada de leitos e disponibilidade de transporte.
Com 40% da população indígena, 2% dos moradores da cidade já contraiu a doença, o maior índice do país. O município é um dos 77 que não se conecta por meios terrestres com nenhum dos leitos SUS: apenas pelo rio ou pelo ar. São cinco dias dentro de um barco ou três horas de avião.
— Nos sentimos impotentes, sabendo que tem pais de família que vão morrer esperando um leito, uma UTI, e não vão conseguir. É um sentimento de impotência. Não temos muito o que fazer, nem meios para tentar — lamenta Francisco Ferreira Azevedo, secretário de Saúde.
Dos nove mortos registrados na cidade, três chegaram a ser transferidos de avião para Manaus. Para os que ficam no município, os respiradores poderiam ser um alento. Mas até isso os assusta graças aos frequentes cortes de energia que os desligam.
No Amazonas, de acordo com o secretário executivo adjunto de Atenção Especializada ao Interior, Cássio Espírito Santo, seis aeronaves têm auxiliado no transporte em municípios que não possuem acesso a leitos de UTI por via terrestre. Em média, são sete rotas diárias, conforme prevê o plano de contingência. No entanto, a principal dificuldade é garantir o tratamento intensivo pleno para os casos graves.
— A hemodiálise só existe na capital e esse é um dos motivos pela qual a remoção se torna necessária — explica o secretário.
Para Mônica Viegas, coordenadora do Grupo de Estudos em Economia da Saúde e Criminalidade, do Cedeplar/UFMG, a construção de leitos de campanha no interior nem sempre é eficiente, diante da falta de garantia de recursos humanos e insumos, além da baixa densidade demográfica de algumas regiões.
— Dependendo da região é preferível estruturar uma logística de transporte bem organizada e tentar controlar a velocidade de propagação da pandemia. Claro que do ponto de vista da população saber que existem leitos disponíveis, às vezes, pode trazer maior percepção de segurança, mas é preciso que esses hospitais tenham condição de operar — alerta.
Em São Paulo, onde a Covid-19 já atingiu 78% dos municípios, foi criado um sistema de gestão de leitos para dar prioridade aos pacientes com quadros respiratórios agudos. No Rio, cerca de 200 veículos foram destinados às cidades, segundo a secretaria de Saúde. No Rio Grande do Norte, há um plano para implementação de leitos de estabilização em todas as regiões e fornecimento de transferências por meio do Samu.
A disponibilidade de transporte, no entanto, não é garantia de internação. Em Ipanguaçu, no interior do Rio Grande do Norte, Maria de Lourdes Oliveira, 72 anos, foi mais uma vítima da escassez de leitos no interior. Moradora da cidade com mais de 15 mil habitantes que não conta com respiradores, testou positivo para Covid-19 e necessitava de uma UTI, em 1º de maio.
Debilitada e com comorbidades, foi colocada somente no oxigênio enquanto aguardava uma remoção para Mossoró, cidade a 90 km com leito mais próximo. Foram dois pedidos em menos de 24 horas, ambos negados por falta de leitos. A família alega que havia quartos disponíveis, e o caso é investigado pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte.
— O estado grave em que ela estava, era preciso a transferência. Disseram que não tinha leito, mas tinha. Tenho certeza que se ela conseguisse um respirador, teria aguentado mais — recorda a neta Anne Caroline Oliveira, de 24 anos, alegando que cidades estão negando pacientes de municípios menores para evitar um colapso.
A Secretaria Municipal de Saúde de Mossoró nega a alegação, mas admite a escassez de leitos. Segundo Adriana Cunha, coordenadora do sistema de Regulação, a rede não estava preparada para absorver essa demanda extra de 44 cidades. A cidade, que conta com 56 quartos de UTI no SUS, tenta expandir as unidades de campanha em dois hospitais, mas a falta de pessoal é um empecilho.
— É uma informação cruel. Se ela não estava na prioridade 1, é que existiam um, dois ou três que tinham uma prioridade maior. Quando você fala isso para uma família, é muito difícil. O que causa isso é uma rede de serviços insuficiente (em relação) à demanda necessária. E pra quem está fazendo essa escolha, não é algo frio.
E nas cidades sem leitos SUS que ainda não registraram casos, o medo é constante, como em Bom Jardim de Minas. Com 7 mil habitantes no interior mineiro, a cidade fica a 1h30 de carro de uma UTI em Juiz de Fora (MG), com 70% dos leitos ocupados. Desde 17 de março, o prefeito Sergio Martins, o Dragão, isolou o município: fechou todos os estabelecimentos, com exceção de serviços considerados essenciais. A prefeitura ainda contratou três costureiras para produzir máscaras para os moradores e colocou barreiras sanitárias nas entradas e saídas da cidade.
— Quer vir para cá? Tem que dar todos os dados e dizer onde vai ficar. Um agente de saúde vai te acompanhar até o local para se certificar que você irá ficar lá mesmo. Tem que ficar 14 dias de quarentena, e a cada 48 horas um fiscal vai ao imóvel checar se você está bem, sem sintomas — explica o prefeito.
A Secretaria de Saúde de Minas Gerais disse que "ainda não é adequado" que todos os municípios tenham estruturas hospitalares capazes de tratar pacientes de Covid-19, e diz priorizar pólos de referência. A cidade tem quatro respiradores, podendo manter até dois futuros casos de Covid-19, mas Dragão teme a possibilidade de pessoas serem infectadas.
Para Diego Xavier, da Fiocruz, medidas como a de Bom Jardim são eficazes, mas sozinhas não impedirão a saturação da rede nas próximas semanas.
— Esperamos que o interior não tenha para onde mandar as pessoas. Os grandes estão saturando e quando os menores precisarem, não terão.