Rio

Pesquisadores encontram mais de 1.280 carvoarias feitas por escravos nos maciços da Pedra Branca e da Tijuca

Eram tantas até o início do século XX que bastou uma manhã em campo há algumas semanas para localizar 13 resquícios dessa atividade em Jacarepaguá

O Rio dos carvoeiros
Pesquisadores da PUC-RJ já descobriram nas florestas dos maciços da Pedra Branca e da Tijuca vestígios de 1.133 carvoarias e de 86 habitações de carvoeiros. Eles acreditam que o número real seja muito maior
1.133 carvoarias
86 habitações
Carvoarias da Pedra Branca
Campo
Grande
Parque Estadual
da Pedra Branca
N
Jacarepaguá
Vargem
Grande
Vargem
Pequena
Barra da Tijuca
recreio dos
Bandeirantes
Guaratiba
Oceano Atlântico
Grumari
Como funcionavam as carvoarias
No século XIX e no início do século XX o carvão vegetal era necessário nas casas, nas manufaturas, na incipiente indústria e, principalmente, na construção civil. As forjas para a produção dos instrumentos de uso nas obras de cantaria eram alimentadas a carvão. Para se produzir uma tonelada de ferro eram necessárias até 3,8 toneladas de carvão
O processo de obtenção do carvão levava cerca de uma semana. Os carvoeiros precisavam controlar a queima dia e noite. Eles faziam isso abrindo e fechando “espias”, pequenos buracos para a ventilação
O balão era um cone feito com lenha empilhada revestido com barro. Isso abafava a queima da lenha e permitia que ela virasse carvão
Uma carvoaria era usada, em média, somente oito vezes, até que a mata em volta se esgotasse
Os carvoeiros
monitoravam o
balão pra ver
se o carvão já
está no ponto
Ele chegava
a medir
3,5 metros
de altura
Renato Carvalho/Infografia
O Rio dos carvoeiros
Pesquisadores da PUC-RJ já descobriram nas florestas dos maciços da Pedra Branca e da Tijuca vestígios de 1.133 carvoarias e de 86 habitações de carvoeiros. Eles acreditam que o número real seja muito maior
1.133 carvoarias
86 habitações
Carvoarias da
Pedra Branca
N
Campo
Grande
Jacarepaguá
Vargem
Grande
Vargem
Pequena
Barra
da Tijuca
Recreio dos
Bandeirantes
Oceano Atlântico
Grumari
Como funcionavam as carvoarias
No século XIX e no início do século XX o carvão vegetal era necessário nas casas, nas manufaturas, na incipiente indústria e, principalmente, na construção civil. As forjas para a produção dos instrumentos de uso nas obras de cantaria eram alimentadas a carvão. Para se produzir uma tonelada de ferro eram necessárias até 3,8 toneladas de carvão.
O processo de obtenção do carvão levava cerca de uma semana. Os carvoeiros precisavam controlar a queima dia e noite. Eles faziam isso abrindo e fechando “espias”, pequenos buracos para a ventilação
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O balão era um cone feito com lenha empilhada revestido com barro. Isso abafava a queima da lenha e permitia que ela virasse carvão
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Uma carvoaria era usada, em média, somente oito vezes, até que a mata em volta se esgotasse
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Os carvoeiros monitoravam
o balão pra ver se o carvão
já está no ponto
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Ele chegava
a medir
3,5 metros
de altura
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Renato Carvalho/Infografia

RIO — Do chão das florestas urbanas do Rio de Janeiro brota história. A paisagem revela um passado ausente em documentos e registros oficiais. E remete à memória dos carvoeiros, em sua maioria quilombolas e ex-escravos, que ajudaram a construir a cidade. Eram tantas as carvoarias no século XVIII, até o início do século XX, que bastou uma manhã em campo há algumas semanas para localizar 13 resquícios dessa atividade no entorno da antiga Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, uma área que hoje pertence ao campus Fiocruz Mata Atlântica.

— Produzir carvão em florestas íngremes era um trabalho brutal e, ao mesmo tempo, invisível, porque jamais foi reconhecido pela sociedade. Porém, para uma parte miserável da população, em quase sua totalidade negra, era o único meio de sobrevivência. O Rio, por séculos, cresceu movido a carvão vegetal — afirma Rogério Ribeiro de Oliveira, professor do Departamento de Geografia e Ecologia da PUC-Rio, que há cerca de 15 anos estuda os carvoeiros do Rio.

CASAS NO MEIO DA FLORESTA

Foi Oliveira que levou um grupo de 17 alunos de mestrado da universidade para uma visita de campo à área da Fiocruz, no mês passado. Além das 13 carvoarias, foram descobertos escombros de habitações e casebres feitos de barro ou sopapo (pau-a-pique).

A área integra o Maciço da Pedra Branca, onde outros 1.133 platôs de carvoarias e 86 vestígios das antigas habitações rudimentares dos trabalhadores já foram encontrados. Na ainda menos estudada Floresta da Tijuca, somente em áreas da Serra da Carioca, aquela voltada para a Zona Sul, são cerca de 150 antigas carvoarias.

— O número real deve ser muito maior. Só uma pequena parte dos maciços da Pedra Branca e da Tijuca foi pesquisada. As matas do Rio estão impregnadas de trabalho humano — diz Oliveira, que estuda a interação entre as dimensões históricas e ecológicas da paisagem.

Os carvoeiros construíam as casas no meio da mata, junto às plataformas que erguiam para seus fornos rudimentares, onde a lenha era arrumada com a forma de um cone e revestida de barro por fora. Uma vez acesos, exigiam 24 horas por dia de atenção, para que não se perdesse o produto final.

Era preciso abrir a floresta em terreno acidentado, usar enxadas para fazer os platôs e depois cortar a lenha com instrumentos precários. A comida era escassa e as distâncias até a cidade, grandes. Como hoje, havia calor e mosquitos de sobra.

— Esses homens trabalhavam em pequenos grupos e precisavam se revezar o tempo todo. Faziam um trabalho não apenas fisicamente brutal, mas degradante, porque havia muito preconceito contra carvoeiros, vistos apenas como imundos — destaca Oliveira.

O geógrafo Gabriel Paes, cuja tese de mestrado investigou o uso da floresta do Maciço da Pedra Branca pelos carvoeiros nos séculos XIX e XX, diz que produzir carvão era um trabalho sem fim:

— Cada forno, em média, podia ser usado apenas oito vezes antes que a mata perto se esgotasse. Era preciso então começar tudo de novo. Quase sempre quem vendia o carvão eram intermediários ou crianças. Há até um poema, de Manuel Bandeira, que fala sobre os meninos carvoeiros, magros e sujos.

Marcas desse trabalho socialmente invisível hoje, como outrora, estão, por exemplo, em trechos de mata por trás dos bairros do Jardim Botânico e do Humaitá, diz o também professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio Alexandre Solórzano, parceiro de Oliveira nos estudos:

— Há vestígios de carvoarias na região onde existia o antigo Engenho da Cabeça, que começava no fim da atual Rua Faro. Mas toda a Serra da Carioca está repleta de marcas de carvão. Também encontramos carvoarias nas pedras da Gávea e Bonita.

Para localizar as antigas carvoarias, diz Oliveira, é preciso aprender a pensar como carvoeiro. Tem que observar a mata e o chão aplainado, procurar por solo totalmente enegrecido e pedacinhos de carvão. Coisas assim existem a mais de mil metros de altitude, próximo ao Pico da Pedra Branca. Nas encostas inclinadas no Morro de Santa Bárbara, também na Zona Oeste, existem 35 carvoarias a mais de 600 metros de altitude, todas encontradas num único dia.

— Os carvoeiros buscavam na floresta árvores para produzir carvão e também refúgio. Durante o século XVIII, até a abolição no século XIX, os carvoeiros eram em parte quilombolas fugidos dos engenhos nas planícies de Jacarepaguá e das encostas da Tijuca, ou alforriados que compraram a liberdade ou foram libertados pela igreja. Vendiam a produção por meio de intermediários, que ficavam com a maior parte do dinheiro — explica Oliveira.

De acordo com ele, após a abolição, os carvoeiros eram, em sua maioria, ex-escravos, que precisavam se sustentar, e as suas famílias. Esses homens trabalhavam em terras que não eram deles, numa atividade perigosa e ilegal. Nas encostas mais elevadas e íngremes das florestas do Rio, mesmo sendo obrigados a construir plataformas a duras penas, conseguiam esconderijo.

— A história dos carvoeiros é a de um êxodo urbano ignorado. A mesma sociedade que os relegava à marginalidade comprava o seu carvão. E em quantidades colossais. Acreditamos que o auge das carvoarias foi no fim do século XIX e início do XX, com as reformas urbanísticas do Rio — afirma Oliveira.

MATA ATLÂNTICA RENASCE

Segundo o professor, o único cronista a registrar a atividade dos carvoeiros foi Magalhães Corrêa, no seu “O sertão carioca”, de 1933. Essa obra clássica sobre a Zona Oeste do Rio passou décadas esgotada e foi relançada este ano, num projeto apoiado pela Faperj:

— O Rio Antigo foi erguido pela energia do carvão das florestas.

Oliveira explica que era preciso muito carvão para cortar os paralelepípedos das ruas, as pedras das calçadas, dos pórticos e das fachadas dos sobrados. Pelas suas contas, para se fazer um metro de portal, com 20 centímetros de largura, eram necessários cerca de 20 ponteiros de ferro:

— Os ponteiros ficam cegos logo e só podem ser afiados se levados à forja, alimentada a carvão. Essas oficinas se multiplicaram para dar conta do crescimento da construção civil da cidade na virada dos séculos XIX e XX. Não era desprezível o consumo de carvão no Rio nessa época.

Os pesquisadores estimam que as carvoarias foram abandonadas de vez por volta da década de 1930:

— A energia do carvão vegetal já não tinha espaço frente ao petróleo — observa Oliveira.

A Mata Atlântica fez então o que sempre faz quando deixada em paz. Voltou a crescer. Cobriu plataformas, escondeu as marcas. Misturou barro ao carvão.

— A floresta renasceu. Mas as árvores e as alterações no solo ainda estão lá para nos contar histórias — afirma Paes.