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Rio

Medo volta às favelas: suspeita da Covid faz crescer procura por atendimentos nas comunidades

Clínica da Família Zilda Arns, no Complexo do Alemão, saiu de três pacientes com sintomas respiratórios, na terça-feira da semana passada, para 111 na última segunda-feira
A recepção da Clínica da Família Zilda Arns, no Complexo do Alemão Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
A recepção da Clínica da Família Zilda Arns, no Complexo do Alemão Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

RIO - Moradora do Complexo do Alemão, a promotora de vendas Nilma Moraes de Lucena, de 38 anos, tem todos os sintomas da Covid-19. Há cinco dias, sente muita dor no peito, tem coriza e tosse sem parar. Durante a rotina atribulada, em que adiou a ida ao médico, ela se dividiu entre medo de ter a doença e o de ficar sem trabalhar. Nilma mora num barraco com mais quatro pessoas — o marido, duas filhas e uma netinha de 2 anos — e foi uma das muitas pessoas que bateram ontem à porta da Clínica da Família Zilda Arns, que fica na localidade.

— Tenho muita dor e pressão na cabeça — conta Nilma que, segunda-feira, foi a uma UPA, que lhe pediu um exame de PCR a ser feito na clínica.

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Enquanto ela espera o resultado e a chance de se tratar adequadamente, milhares de moradores de favelas cariocas estão à margem da pandemia. Um descaso que não lhes deixa imunes ao coronavírus, muito pelo contrário, porque vivem em crise sanitária desde antes da chegada da Covid-19, mas que compromete o acesso ao serviço de saúde e até estatísticas confiáveis. No Alemão, é possível detectar a nova alta de casos a partir da rotina da Clínica da Família Zilda Arns. Saiu de três pacientes com sintomas respiratórios, na terça-feira da semana passada, para 111 na última segunda-feira. Entre eles, há infectados de todas as idades que chegam em estado crítico à unidade, que não dispõe de vagas para internação. Na última segunda-feira, de acordo com os profissionais de saúde de lá, um jovem foi intubado lá mesmo, enquanto aguardava a transferência para um hospital. Nesta terça, quando a equipe do GLOBO esteve no local, 19 casos suspeitos foram atendidos só pela manhã. E o dia seria de trabalho intenso. À noite, a taxa de ocupação de leitos de UTIs em todas as unidades públicas da capital bateu 94%, perto do que especialistas consideram um quadro crítico.

Assistente financeira, Nathaliane de Souza Amorim, de 26 anos, avisou que, no trabalho, há vários colegas com suspeita de Covid, o que a fez procurar atendimento já que, desde domingo, perdeu o paladar e está com uma tosse seca:

— Moro em Olaria, e estou com muito medo.

Nilma Moraes de Luciena mostra receita obtida na UPA do Alemão Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Nilma Moraes de Luciena mostra receita obtida na UPA do Alemão Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Enquanto unidades básicas do Rio tiveram um crescimento na demanda de cerca de 20%, o que levou à adoção de restrições para bares e “toque de recolher” entre 23h e 5h, nas favelas pouco se sabe. O levantamento tem que ser feito de forma quase artesanal. É o que tem tentado fazer, desde julho do ano passado, o Painel Unificador da Covid-19 nas Favelas, iniciativa de coletivos de comunidades e de organizações da sociedade civil, com apoio da Fiocruz. Com aproximação de dados de CEP — já que muitos endereços não estão catalogados —, a ferramenta tenta desenhar a realidade escondida em morros e favelas da cidade. Até agora, foram contabilizados 27.857 registros da doença e 2.610 óbitos. Do total de casos, 180 são autodeclarados, o que é incentivado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em locais com baixo índice de testagem. Apesar do esforço, os pesquisadores veem com desconfiança os números.

— É um sinal amarelo que acendeu. Estamos preocupados que isso signifique uma volta aos patamares da primeira onda (entre abril e junho de 2020), que chamávamos até seis ambulâncias por dia para levar pacientes mais graves a hospitais — diz o médico da família Humberto Sauro Victorino Machado, da Zilda Arns, estimando que em três dias houve um aumento de 70% na procura de pessoas possivelmente infectadas.

Setor de atendimento de pessoas com sintomas de Covid na Clínica da Família Zilda Arns Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Setor de atendimento de pessoas com sintomas de Covid na Clínica da Família Zilda Arns Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Mais testes positivos

No Alemão, além da Zilda Arns, a alta foi observada também nas clínicas Bibi Vogel, Valter Felisbino de Souza e Rodrigo Y Aguilar Roig. De dez pacientes que foram testados na Rodrigo Y Aguilar Roig nos últimos dias, sete deram positivo. Ontem, a unidade fez 11 atendimentos, enquanto, entre janeiro e fevereiro, este número não passava de quatro. Já a Clínica Bibi Vogel foi procurada por 47 pessoas com sintomas da doença, contra cerca de 16 por dia no mês passado.

Mesmo com subnotificação, o total de casos e mortes em favelas, contabilizados pelo Painel Unificador da Covid-19, já chegam à ordem de grandeza de números de cidades como Niterói e São Gonçalo. Pelo ranking da OMS, as comunidades cariocas somadas teriam mais casos que países como Tailândia e Angola, e mais mortes que Dinamarca, Coreia do Sul e Nigéria.

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Entre as que estão em pior situação no ranking, segundo o painel, estão a Maré (3.155 casos e 169 mortes), o Alemão (1.332 casos e 92 mortes) e a Rocinha (1.162 casos e 71 mortes). Também há concentração de registros na Cidade de Deus (643 casos e 111 mortes) e em Rio das Pedras (289 casos e 15 mortes). Em Manguinhos, que soma 742 casos e 64 óbitos, três pessoas foram diagnosticadas pela prefeitura com a variante brasileira do vírus.

— Toda semana, ou no máximo a cada duas, nos reunimos com coletivos e líderes comunitários. Nós já sabemos que há um aumento nos casos. São famílias inteiras pegando Covid, morrendo, mas os dados da prefeitura são muito limitados. O nosso painel é uma tentativa de preencher um pouco essa lacuna e pressionar o poder público — diz Theresa Williamson, planejadora urbana e diretora-executiva da Comunidades Catalisadoras (ComCat), que gere o painel.

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Lucas Pablo, um dos coordenadores do grupo Rocinha Resiste, afirma que a comunidade está assustada com o avanço da pandemia.

— Algumas clínicas da família aqui da área sequer estão fazendo atendimento, para evitar que as pessoas aglomerem — relata Lucas.

Fátima Cristina de Menezes Dantas na Clínica da Família Zilda Arns Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Fátima Cristina de Menezes Dantas na Clínica da Família Zilda Arns Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Dias de aflição

No Jacarezinho, o coletivo LabJaca estima que as clínicas da família locais têm feito mais atendimentos por dia.

— Estamos vivendo um período de grande aflição. Os dados oficiais não condizem com a nossa realidade — disse Mariana Galdino, uma das coordenadoras do LabJaca.

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Na Maré, complexo com 16 favelas, acredita-se que a “nova onda” começou há cerca de dez dias. Luna Escorel Arouca, coordenadora do Redes da Maré e do projeto Conexão Saúde, que faz um trabalho de suporte e conscientização da população, atribui a alta a um certo relaxamento após um ano de restrições. Oferecendo de alimentos a testes gratuitos para Covid-19, a entidade destaca que até a busca por exames caiu. Em janeiro, foram feitos 1.788 testes, mas mês passado a queda foi de e 58%.

Procurada, a Secretaria municipal de Saúde não se pronunciou sobre a situação da clínica da família da Rocinha. Também não disponibilizou números de atendimentos em unidades básicas em favelas da capital.