Rio

Menino atingido em Bangu é a centésima criança baleada no Grande Rio em cinco anos

A Vila Aliança, onde Kaio foi alvejado, concentra, ao lado do Morro do Juramento, o maior número de casos: foram três em cada comunidade
Kaio Guilherme da Silva Baraúna, de 8 anos Foto: Reprodução
Kaio Guilherme da Silva Baraúna, de 8 anos Foto: Reprodução

RIO - Quando o menino Kaio Guilherme da Silva Baraúna , de 8 anos, caiu ensanguentado numa festa infantil, na última sexta-feira, na comunidade Vila Aliança, em Bangu, entrava para uma estatística que revela o quão avassaladora a violência tem sido para meninos e meninas no Rio. Ele foi a centésima criança baleada na Região Metropolitana fluminense nos últimos cinco anos, seis delas apenas nestes primeiros meses de 2021, segundo levantamento do Fogo Cruzado. O garoto, atingido por uma bala perdida na cabeça, continua internado em estado grave no Hospital municipal Pedro II, em Santa Cruz. A Polícia Civil trabalha com a hipótese de que o disparo tenha partido de uma área controlada por traficantes de uma facção rival à da Vila Aliança.

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A favela da Zona Oeste, ao lado do Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho, concentra o maior número de vítimas com até 12 anos desde 2016: cada comunidade registrou três casos. Em perspectiva, as chamadas balas perdidas respondem por 76% das 100 crianças feridas nesse período, de acordo com o levantamento da plataforma. Das vítimas, 39% foram alvejadas em ações com a presença de agentes de segurança. O relatório ainda traça a geografia de onde os tiroteios são mais fatais. Segundo o Fogo Cruzado, 29 crianças morreram baleadas no intervalo analisado, 18 delas na cidade do Rio, e as demais em Duque de Caxias (quatro), Belford Roxo (duas), São Gonçalo, São João de Meriti, Magé, Maricá e Niterói (uma em cada município).

Sonho de ser jogador

No drama vivido por Kaio, a família faz uma corrente de orações pela vida do menino. Ele foi atendido inicialmente no Hospital municipal Albert Schweitzer, em Realengo, onde chegou em parada cardiorrespiratória e foi reanimado. Depois de passar por procedimentos de emergência, ele acabou transferido para uma UTI do Pedro II, que é referência em neurocirurgia e onde foi operado. De acordo com a professora Thais Silva, de 29 anos, mãe do garoto, um culto foi feito para pedir que ele se recupere logo.

— Fizemos um culto na tarde de domingo. Tem muita gente orando pelo restabelecimento da saúde do meu filho — conta a professora. — Creio que ele vai acordar.

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Descrito como uma criança alegre, Kaio sonha em ser jogador de futebol e aparece em uma das fotos de família com a camisa do Bangu, time do bairro em que mora. Ele foi baleado quando estava em uma festa que acontecia em um espaço aberto da Vila Aliança, com cerca de 30 crianças e outros três adultos. Por volta das 16h30, o menino estava na fila para fazer uma pintura no rosto. De repente, caiu no chão.

— Quando vi muito sangue, não conseguia nem reagir, só chorar. Não conseguia nem segurar meu filho — disse Thais, muito abalada, ao RJ1 da TV Globo.

Uma testemunha contou a policiais da 34ª DP (Bangu) que não havia tiroteio quando o menino foi baleado, o que foi confirmado por parentes. Uma das linhas de investigação é a de que o tiro que feriu Kaio tenha vindo da Vila Kennedy.

— O registro foi feito ainda na sexta-feira, e um inquérito foi aberto. Estamos investigando de onde partiu o tiro, mas já sabemos que não havia confronto na Vila Aliança — disse o delegado Luís Maurício Armond Campos, da 34ªDP (Bangu).

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Em tempos de pandemia, a primeira criança baleada de 2021 foi atingida nos primeiros minutos do ano, quando a menina Alice Pamplona da Silva, de 5 anos, estava em casa, durante os festejos da virada, e teve a vida interrompida por uma bala perdida no Morro do Turano, no Rio Comprido. O caso é investigado pela Delegacia de Homicídios da Capital.

’Face mais hedionda’

Em 2020, segundo o Fogo Cruzado, já tinham sido 22 crianças alvejadas, pouco menos que em 2019 (24 vítimas ) e que em 2018 (25), ano de intervenção federal na segurança pública do Rio e o mais perigoso da série histórica para as crianças. Já em 2017 tinham sido 18 e, no período de 2016 analisado pela plataforma, mais cinco.

A ONG Rio de Paz acompanha as consequências dessa violência e fez seu próprio levantamento. Entre 2007 e 2021, 81 crianças, de zero a 14 anos, morreram atingidas por tiros. Só em 2020, foram 12 — em média, uma vida perdida por mês.

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Um dos episódios mais emblemáticos ocorreu no último dia 4 de dezembro, quando as primas Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7 anos, e Emilly Victoria da Silva Moreira Santos, de 4, brincavam em frente ao portão de casa, na comunidade do Barro Vermelho, em Gramacho, Duque de Caxias, na Baixada. Uma mesma bala atingiu as duas meninas, que morreram. Testemunhas alegaram que PMs teriam feito disparos ao entrar na comunidade.

Nesses casos, certos padrões se repetem. Um deles, afirmam especialistas, defensores públicos e agentes sociais que trabalham no mapeamento dos meninos e meninas feridos e mortos, é o local onde ocorrem as tragédias. Segundo o presidente da Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, a grande maioria acontece em comunidades e bairros periféricos.

— Parte se dá por conta de confrontos entre policiais e bandidos, outra, de embates entre traficantes. Há ainda casos de mortes por arma de fogo que não se inserem nestes dois contextos. Foi o que aconteceu quando uma criança foi baleada na virada do ano (o caso de Alice, no Turano), pois usaram uma arma de fogo como fogos de artifício — lembra Antônio Carlos.

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Para ele, a presença de armas e munição nas comunidades pobres do Rio é um problema crônico, que o estado tem sido incapaz de coibir. Muitas vezes, recorda o presidente da Rio de Paz, essas crianças morrem em plena luz do dia, dentro das escolas e de seus lares:

— Não existe essa história da criança estar no lugar errado e na hora errada. Ela está no lugar certo: brincando em casa e estudando nas escolas. As mortes de meninos e meninas por bala perdida são a face mais hedionda da criminalidade do Rio .

Operações em debate

Ouvidor-Geral da Defensoria Pública do Rio, Guilherme Pimentel diz que, após as fatalidades ocorrerem, defensores procuram familiares e providenciam assistência jurídica e atendimento psicossocial. No entanto, afirma, falhas na investigação e as recorrentes operações policiais violentas próximas às áreas de circulação de crianças dificultam um desfecho digno para as famílias:

— O modo de entrar atirando põe todos em risco e as crianças são as mais vulneráveis. Por não entenderem o que está acontecendo quando um tiroteio começa, elas não sabem como agir. A banalização de tiroteios em áreas periféricas representa a banalização da vida dessas pessoas.

Pimentel destaca a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que prevê a suspensão das operações policiais em favelas durante a pandemia, e a Lei Ágatha Félix (morta em setembro de 2019, no Alemão), que garante a priorização nas investigações de crimes cometidos contra a vida de crianças. No entanto, ressalta, há um longo caminho a ser percorrido:

— Uma questão emblemática são as tentativas de preservar o perímetro escolar durante as operações. Ou seja, chegamos ao ponto de fazer pedidos judiciais para resguardar escolas. Só isso mostra o quão brutalizada está a sociedade.

RELEMBRE ALGUNS CASOS

Investigações paradas há seis meses

Prestes a completar um ano, a investigação do assassinato do menino João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, está parada . O adolescente foi morto em 18 de maio de 2020 ,durante operação conjunta das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. Desde outubro do ano passado, quando foi realizada a reprodução simulada do crime na casa onde a vítima foi morta, nenhuma nova testemunha foi ouvida nem houve pedidos de medidas cautelares feitos à Justiça, como quebras de sigilo. Enquanto a investigação patina, os três policiais investigados pelo crime seguem soltos e trabalhando normalmente.

João Pedro Matos Pinto, de 14 anos Foto: Roberto Moreyra/23.10.2020
João Pedro Matos Pinto, de 14 anos Foto: Roberto Moreyra/23.10.2020

Inocência interrompida dentro da escola

A menina Maria Eduarda Alves Ferreira, de 13 anos, morreu baleada durante uma aula de Educação Física no pátio da Escola Municipal Daniel Piza, em Fazenda Botafogo, na Zona Norte do Rio, no dia dia 30 de março de 2017. Ela foi atingida durante um tiroteio entre policiais e traficantes na região. Moradores, revoltados, fizeram manifestações. Em junho do ano passado, O GLOBO mostrou que, até então, os policiais que respondiam na Justiça pelo homicídio estavam trabalhando no Centro de Recrutamento de Praças da PM , a unidade responsável por fazer a triagem dos candidatos a entrar na corporação. O caso segue sem sentença, e os réus continuam soltos.

Enterro de Maria Eduarda Alves Ferreira, que tinha 13 anos Foto: Marcio Alves/06.04.2017
Enterro de Maria Eduarda Alves Ferreira, que tinha 13 anos Foto: Marcio Alves/06.04.2017

Tiro de fuzil nas costas na volta de passeio

Era 20 de setembro de 2019 quando Ágatha Vitório Sales Félix, de 8 anos , foi morta numa operação policial no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio. A menina sorridente e que gostava da Mulher Maravilha voltava de um passeio com a mãe. As duas estavam em uma Kombi, onde a pequena foi atingida nas costas. Ela chegou a ser levada para o Hospital Getulio Vargas, na Penha, mas não resistiu. O inquérito da Polícia Civil que apurou a morte revelou que não houve tiroteio no Complexo do Alemão naquela noite, ao contrário do que tinham informado os policiais da UPP Fazendinha. As investigações apontaram que o tiro partiu do fuzil de um PM.

Ágatha Vitório Sales Félix tinha 8 anos Foto: Reprodução
Ágatha Vitório Sales Félix tinha 8 anos Foto: Reprodução