• Keila Cândido
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Ainda que Pequim tente reverter os resultados negativos da política do filho único, o programa extinto em 2015 ainda ameaça o desenvolvimento chinês (Foto: David Pollack/Corbis via Getty Images)

CAMPANHA “Se você quer prosperar, você deve controlar a população”, lê-se na propaganda do governo em defesa da política do filho único (Foto: David Pollack/Corbis via Getty Images)

Quatro-dois-um. Durante 36 anos, entre 1979 e 2015, esse foi o modelo de família tido como ideal na China. Quatro avós; dois pais; um filho.

Instituída por Deng Xiaoping (1904-1997) e estampada nas propagandas do governo, a regra era clara —uma criança por família. Era o início da abertura econômica, e os dirigentes do Partido Comunista temiam que a explosão populacional comprometesse o avanço chinês rumo ao futuro.

Em um estudo publicado em março de 2016 na revista americana Studies in Family Planning, os pesquisadores Wang Feng, Baochang Gu e Yong Cai estimam que 100 milhões das 150 milhões de famílias com um único filho no país foram formadas na vigência de um dos mais rigorosos (e coercivos) programas de planejamento familiar da história.

A política do filho único tinha exceções. Ela não se aplicava, por exemplo, às minorias étnicas; às famílias das zonas rurais, se a criança mais velha fosse uma menina; ou se um dos pais exercesse profissão de alta periculosidade. Para a maioria, no entanto, não havia escolha. Quem desrespeitasse a determinação do governo sofria punições severas. Pesadíssimas, as multas variavam de duas a dez vezes a renda familiar.

Funcionários públicos perdiam o emprego. Mulheres já mães eram esterilizadas. Recém-nascidos eram encaminhados para a adoção. Para escapar às punições, os pais que decidissem ter mais de um filho mantinham a criança na clandestinidade — sem acesso a registro, saúde e educação.

Há relatos terríveis de abortos forçados, como o de Jianmei Feng, em 2012. Então com 25 anos, moradora da província de Shaanxi, mãe de uma menina de 5 anos, Jianmei não tinha como pagar a multa por ter engravidado a segunda vez. Depois de três dias presa, a jovem teve a gestação interrompida, contra a sua vontade.

Ela estava no sétimo mês de gravidez — sim, a cerca de dois meses de dar à luz. Um horror. A imagem de Jianmei em uma cama de hospital com o feto morto a seu lado ganhou o mundo e deflagrou uma onda de protestos em defesa dos direitos das mulheres e das liberdades reprodutivas.

Enquanto vigorava a política do filho único, era comum o aborto por gênero. Quando a primeira gravidez era de menina, frequentemente os pais optavam pela interrupção voluntária da gestação. A preferência por primogênitos meninos está ligada à cultura milenar, baseada nos ensinamentos de Confúcio.

Há 2,5 mil anos, o filósofo chinês estipulava que os homens são o pilar da família e são responsáveis por cuidar dos pais na velhice. As mulheres se dedicam aos maridos. O aborto por gênero levou, naturalmente, ao desequilíbrio na proporção entre homens e mulheres — 30 milhões de chineses a mais do que chinesas. Na tentativa de reverter esse cenário, o governo proibiu os médicos de revelar o sexo do feto aos pais.

Com a melhoria nas condições de vida dos chineses, sobretudo nas grandes cidades, a política do filho único levou o país ao domínio dos “pequenos imperadores”. E o modelo familiar passou para a combinação um-dois-quatro. Uma criança com dois pais e quatro avós a seu inteiro dispor. Em Compre-me o Céu — A Incrível Verdade sobre as Gerações de Filhos Únicos da China, por meio de relatos de casos, a escritora Xinran conta como a decisão do governo deu origem a uma geração de jovens mimados, confusos e despreparados para a idade adulta.

É o caso do filho do executivo incapaz de arrumar a própria mala, como relata Xinran. Ou do rapaz que acha que os problemas inerentes à vida podem ser resolvidos com a mesma facilidade com a qual ele saca o cartão de crédito para comprar uma Lamborghini.

O paparico em torno do principezinho ou princesinha da família teve impacto direto sobre a economia. Um levantamento feito em outubro pela consultoria Mintel, especializada em mercados asiáticos, traz um dado curioso: entre 2013 e 2018, o setor de cuidados pessoais para bebês cresceu a uma taxa anual composta (CAGR) de 19%.

“As pessoas estão dispostas não só a comprar mais, como investir em produtos de qualidade”, diz Thibaud Andre, diretor de pesquisa da Daxue Consulting, agência de estratégia e pesquisa de mercado chinesa. Com a premiumização do consumo, os produtos importados tornaram-se os preferidos. A Jonhson & Jonhson, segundo a Mintel, é a marca mais comprada pelos chineses, seguida pela japonesa Pigeon.

Com o aumento da expectativa de vida e a queda nas taxas de fertilidade, a regra de uma criança por família revelou-se uma ameaça ao desenvolvimento econômico chinês. A escassez de mão de obra é crescente. Conforme dados do ano passado da Comissão Nacional de Saúde da China, em 2050 o país deve chegar a 487 milhões de idosos — o equivalente a 34,9% da população.

Hoje, esse índice é de 17,3%. Um problemão para o governo: como arcar com a saúde e a aposentadoria de tanta gente? A lei então afrouxou. Se ambos os pais fossem filhos únicos, por exemplo, eles agora estavam autorizados a ter o segundo bebê. Até que, em 2015, o governo liberou: todas as famílias chinesas estavam livres para ter o segundo filho. Agora, o recomendado é a configuração quatro-dois-dois. A medida, porém, não teve o sucesso esperado.

Ainda que as autoridades e propagandas agora incentivem os chineses a “ter mais filhos em nome do país”, a população não parece disposta a aumentar a família. O número de nascimentos cai ano a ano, segundo o Escritório Nacional de Estatísticas da China. Foram 17,9 milhões, em 2016; 17,2 milhões, no ano seguinte, e apenas 15,2 milhões de novos bebês, em 2018.

Segundo o Banco Mundial, a taxa de fertilidade no país está em 1,6 filho por mulher. Índice inferior ao mínimo necessário (de 2,1 crianças por mulher) para assegurar a reposição populacional. Pequim já estuda dar incentivos financeiros e estender a licença-maternidade para incentivar os chineses a terem filhos.

Além de todas as questões de ordem demográfica (impostas ou naturais), há de se levar em conta as mudanças comportamentais da sociedade chinesa, imprescindíveis nessa equação. Uma delas, importantíssima, é a emancipação feminina. A maioria das chinesas não pensa em abrir mão da liberdade para tomar conta de filho — ainda que apenas por um período. Aos 34 anos, Lisa Zhou é casada com Oliver Wang, de 38 anos. Ela trabalha em um banco estatal chinês e ele é relações-públicas da Hello-bike, empresa de bicicletas compartilhadas. Lisa e Oliver são pais de Osmo, de 4 anos.

Para eles, a família está de bom tamanho. Mesmo com a autorização do governo, a executiva não pensa no segundo filho. Quer se dedicar à carreira —uma escolha mais e mais comum entre as chinesas. Quando ambos os pais trabalham, tradicionalmente as crianças ficam sob os cuidados dos avós, especialmente os paternos. “Não quero sobrecarregar meus pais”, diz Oliver a Época NEGÓCIOS. “Quero que eles tenham uma vida mais leve.”

É bastante comum, nas praças das grandes cidades chinesas, a cena dos avós com seus netos. As escolas infantis são caras. Às públicas vão os filhos de funcionários de empresas estatais  e integrantes do Partido Comunista. Aliás, o acesso a creches e escolas gratuitas de boa qualidade tem sido oferecido pelo governo às famílias que se dispõem a ter o segundo filho.

Em One Child, de 2016, a escritora Mei Fong descreve a medida de Deng Xiaoping como o “experimento mais radical da China”. Segundo ela, a política do filho único foi elaborada por cientistas militares, que acreditavam que a taxa de fertilidade, caso necessário, poderia ser facilmente revertida — o que se provou um grande engano. Economistas, sociólogos e demógrafos foram deixados de fora da elaboração do programa.

Na década de 70, a China lançou um programa de planejamento familiar, cujo slogan era “Later, Longer, Fewer”. Tenha filhos mais tarde. Prolongue o intervalo entre os filhos, entre três e quatro anos, para garantir que todas as crianças cresçam com a mesma atenção e com os cuidados adequados de saúde e educação.

Essa distância entre um filho e outro permite aos pais refletir se realmente gostariam de ter outro bebê em casa. E tenha menos filhos. A ideia por trás dessa filosofia era educar os pais sobre as vantagens de famílias menores — mais saudáveis e mais bem-educadas. Essa estratégia mostrou-se eficaz. Graças a ela, o número médio de crianças por família na China foi reduzido à metade — de seis para três rebentos. “Muitos demógrafos acreditavam que esse padrão na queda da fertilidade teria continuado sem a imposição da política de um filho”, lê-se em One Child. “Uma suposição razoável, considerando trajetórias de fertilidade semelhantes entre as nações asiáticas vizinhas.” Se a China conseguirá resolver suas questões demográficas, só o tempo dirá.

China: O Unicef calcula em 60 milhões o número de filhos que só veem os pais uma vez por ano (Foto: Getty Images)

DISTÂNCIA O Unicef calcula em 60 milhões o número de filhos que só veem os pais uma vez por ano (Foto: Getty Images)

AS CRIANÇAS “DEIXADAS PARA TRÁS”

A infância na China rural está órfã. Uma em cada cinco meninas e meninos vive sem os pais. As chamadas “crianças deixadas para trás” somam, segundo o Unicef, 60 milhões. Elas são resultado do processo de urbanização do país. A partir de meados dos anos 90, o governo chinês permitiu a migração controlada do campo para a cidade. Controlada porque a autorização só é concedida mediante uma rigorosa avaliação. Os mais qualificados recebem o hukou, o registro de residência.

Para fugir da miséria no campo, mesmo sem o aval das autoridades, muitos chineses se arriscam na mudança. Sem o hukou, porém, estão condenados ao subemprego e a viver em moradias precárias. Como seus filhos não teriam acesso a saúde e educação na cidade, preferem deixar as crianças no campo, em geral aos cuidados dos avós. Entre 1995 e 2005, estima-se que 300 milhões de chineses foram tentar a vida nos centros urbanos. Enquanto isso, em algumas províncias o índice de crianças sem pais chega a 50%. Os pequenos, em sua maioria, só veem os pais uma vez por ano, no Ano-Novo Chinês.

Ainda que essas crianças estejam sob os cuidados dos avós, crescer sem os pais por perto tem impactos negativos não só no curto, mas no médio e no longo prazo. “Em comparação com crianças que tiveram ambos os pais em casa, um estudo mostra que os filhos deixados para trás são mais infelizes, têm maior probabilidade de abusar da bebida e do cigarro e de cometer suicídio. Além disso, abandonam a escola, têm notas mais baixas e desenvolvem problemas psicológicos e comportamentais com mais frequência”, lê-se em artigo da revista Harvard Political Review, assinado por Alicia Zhang, em março passado.

Quando as crianças deixadas para trás atraíram a atenção internacional, Pequim resolveu agir. Anunciou uma série de medidas. Entre as quais, aumentar a concessão de registros de residência na cidade, melhorar a educação rural e “realizar mais pesquisas sobre o assunto”. “Até o momento, porém, essas iniciativas tiveram pouco efeito na prática, e o número de crianças deixadas para trás continua a crescer”, escreve Alicia. “Mesmo que a China reforme com êxito o sistema de hukou e melhore as escolas rurais, a falta de oportunidades no campo continuará a levar os pais às cidades chinesas em busca de trabalho.”

Ainda que Pequim tente reverter os resultados negativos da política do filho único, o programa extinto em 2015 ainda ameaça o desenvolvimento chinês (Foto: David Pollack/Corbis via Getty Images)
Ainda que Pequim tente reverter os resultados negativos da política do filho único, o programa extinto em 2015 ainda ameaça o desenvolvimento chinês (Foto: David Pollack/Corbis via Getty Images)
Ainda que Pequim tente reverter os resultados negativos da política do filho único, o programa extinto em 2015 ainda ameaça o desenvolvimento chinês (Foto: David Pollack/Corbis via Getty Images)
Ainda que Pequim tente reverter os resultados negativos da política do filho único, o programa extinto em 2015 ainda ameaça o desenvolvimento chinês (Foto: David Pollack/Corbis via Getty Images)
Ainda que Pequim tente reverter os resultados negativos da política do filho único, o programa extinto em 2015 ainda ameaça o desenvolvimento chinês (Foto: David Pollack/Corbis via Getty Images)