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Economia

Austrália abre debate global sobre big techs e remuneração de conteúdo. Isso está apenas começando, diz especialista

Para diretor do instituo LGPD Ricardo Campos, discussão vai chegar a diversos países e Brasil precisa perceber que é questão de democracia
Para Ricardo Campos, diretor do instituto LGPD, países como o Brasil têm de evitar “deserto de notícias”, quando não há jornais locais Foto: Arquivo pessoal
Para Ricardo Campos, diretor do instituto LGPD, países como o Brasil têm de evitar “deserto de notícias”, quando não há jornais locais Foto: Arquivo pessoal

A disputa entre o governo da Austrália e o Facebook sobre a remuneração de conteúdo a empresas jornalísticas por parte das grandes plataformas será a primeira de muitas batalhas de uma guerra que mal começou. Essa é a avaliação de Ricardo Campos, docente assistente na Goethe Universität Frankfurt am Main e diretor do Instituto Legal Grounds for Privacy Design (LGPD). Em entrevista ao GLOBO, ele afirmou que buscar formas para que as plataformas on-line e as empresas jornalísticas trabalhem juntas é uma questão de democracia: “Espero que o Brasil perceba isso antes que seja tarde demais.”

Relembre: Regulação das ‘big techs’ põe Google na berlinda

Como o senhor avalia a lei australiana e seu impacto nas grandes plataformas?

A lei australiana cria mecanismos de acordo, através de um mediador, no sentido de plataformas digitais remunerarem a mídia e editoras locais, que tenham seu conteúdo veiculado em feeds de notícias ou resultados de busca. Ela exige, por exemplo, que Facebook e Google compartilhem com as editoras a receita publicitária gerada em relação à veiculação de conteúdo jornalístico em suas plataformas. O argumento até então era que os serviços digitais gerariam tráfego para esses conteúdos produzidos por profissionais, por isso não haveria necessidade de remuneração. O impacto já está sendo sentido. Todas as grandes corporações já estão negociando com empresas de mídia e jornais, procurando antecipar, e até evitar, regulações dos Estados nesse sentido.

Veja: Microsoft defende que grupos de mídia negociem com 'big techs' por remuneração de conteúdo

A Austrália é prenúncio do que acontecerá em outros países?

Sim. Trata-se de um problema estrutural que afeta todos os países — especialmente os democráticos — e que aos poucos se espalhará mundo afora. O governo do Canadá abriu processo de consulta pública para organizações de mídia e plataformas digitais. Principalmente para países com dimensões continentais como o Brasil, essas iniciativas são importantes para evitar os “desertos de notícias”, no qual praticamente inexiste jornalismo no plano regional. O desafio é criar mecanismos que fomentem um ecossistema de notícias de qualidade no plano regional e no interior.

Há outra forma de regulação?

Sim. Um sistema interessante seria equivalente ao desenvolvido no direito ambiental. É evidente que os modelos de negócios de plataformas digitais produzem efeito positivo ao amplificar o acesso à informação. Mas há externalidades negativas, refletidas no discurso de ódio e na desinformação. São a poluição produzida pelo modelo de negócio das plataformas. Seria interessante o Estado seguir o exemplo do direito ambiental e fomentar, de forma inteligente, a diminuição da poluição informacional nas democracias pela forma de impostos.

Existem projetos de leis similares em outros países?

Na França houve a rápida implementação da Diretiva de Direitos Autorais da União Europeia de 2019. No início do ano, o Google fechou acordo com L’Alliance de la Presse d’Information Générale (Aliança da Imprensa de Informação Geral) para remuneração de conteúdo jornalístico. Em fevereiro, o governo alemão apresentou projeto de lei para implementar a Diretiva da UE.

Veja também : Google e Facebook fazem lobby contra lei dos EUA que prevê negociação coletiva com grupos de mídia

O que nos ensina o exemplo australiano?

Ambos os veículos (jornalismo e plataformas digitais) financiam-se através de publicidade. As empresas jornalísticas geram conteúdo próprio, organizando o conteúdo em redações, enquanto plataformas digitais organizam conteúdos de terceiros por algoritmos. As plataformas lucram vendendo publicidade a partir da circulação de conteúdo de terceiros, muitas vezes jornalístico. Estaria o Estado violando sua posição de neutralidade ao garantir tratamento diferenciado a um setor voltado para a mesma atividade, venda de publicidade? A Austrália abre discussão global sobre a relação entre jornalismo e plataformas, e seus mecanismos de financiamento, que apenas está começando.

As notícias falsas continuam a circular. Isso mostra que a lei australiana não resolve tudo?

A internet não somente democratizou a informação. Ao mesmo tempo, democratizou a desinformação, com sérias consequências para a democracia e para saúde pública, como vemos no Brasil durante a pandemia. Em poucas décadas, grande parte da informação que circulará será informação sem critério de qualidade. Uma esfera pública plural e de qualidade é tão imprescindível para a democracia quanto um Parlamento funcionando. Buscar mecanismos de complementariedade entre a economia de plataformas e o jornalismo tradicional é, acima de tudo, uma questão de democracia. Espero que o Brasil perceba isso antes que seja tarde demais.