Por Erick Rianelli, Felipe Freire, Guilherme Santos e Leslie Leitão, RJ2


Complexo da Maré concentra quadrilhas especializadas em diversos crimes

Complexo da Maré concentra quadrilhas especializadas em diversos crimes

Investigações da Polícia Civil do Rio de Janeiro identificaram que quadrilhas especializadas em diferentes tipos de crimes costumam se esconder no Complexo de favelas Maré, na Zona Norte do Rio. Um levantamento exclusivo do RJ2 mostra que na região há 244 criminosos foragidos da Justiça.

São, segundo a polícia, grupos especializados em roubos de carros na Zona Sul, sequestros relâmpagos na Zona Norte, responsáveis por ataques a depósitos na Baixada Fluminense e assaltos a bancos em São Gonçalo, na Região Metropolitana. As ações ocorrem até fora do estado, em Minas Gerais.

Para a polícia, a localização privilegiada do conjunto de favelas favorece a concentração de algumas dessas quadrilhas que agem nas diferentes regiões. Entre os 244 foragidos, a corporação destaca que há 71 bandidos de cinco quadrilhas especializadas em assaltos a caminhões e roubos de centros de distribuição. Os outros são apontados como autores de outros crimes.

Moradores do Complexo da Maré são reféns do crime organizado

Moradores do Complexo da Maré são reféns do crime organizado

Moradores acuados

Enquanto os bandidos da Maré planejam ataques fora das favelas, do lado de dentro moradores são reféns do crime organizado. O RJ2 apurou que muitos vivem sob uma "lei do silêncio".

Desde o começo da pandemia, apenas 42 moradores procuraram o Disque-Denúncia para relatar a presença e o poder de fogo do tráfico de drogas. Atualmente, a Maré tem cerca de 140 mil habitantes.

Além disso, um levantamento da Divisão de Homicídios mostra que, em 2020, o número de assassinatos aumentou 14% na maré em relação ao mesmo período do ano passado: de 43 para 49.

Kauã, de 11 anos, foi uma das vítimas. Ele levou um tiro na cabeça quando a arma de um bandido disparou sem querer (relembre no vídeo abaixo).

Criança de 11 anos morre baleada na cabeça

Criança de 11 anos morre baleada na cabeça

Crianças também são obrigadas a conviver com a venda de drogas. Sem repressão, o tráfico acontece à luz do dia, em barracas montadas no meio da rua.

O complexo vai do conjunto Esperança, em Manguinhos, até a Praia de Ramos, passando por Parque União, Nova Holanda, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Vila do João, Vila dos Pinheiros e mais oito comunidades.

Se fosse uma cidade, a região teria mais moradores que 96% dos municípios brasileiros.

Combustível é levado para favelas

Para evitar do conjunto de favelas, os bandidos arrumaram um jeito de abastecer veículos das quadrilhas com gasolina.

A polícia identificou pontos de venda na Nova Holanda, em mais uma prática que expõe a comunidade ao risco. O alerta das autoridades é que, sem os cuidados necessários para armazenamento, é grande a possibilidade de uma explosão.

"Aquela região da Maré, ali, seguramente é uma das áreas com maior concentração de armamento de guerra do RJ, principalmente em razão da disputa territorial que existe ali entre as duas das maiores facções de narcotraficantes", explicou o delegado Marcos Amim.

Posição geográfica privilegiada

Complexo da Maré fica entre a Av. Brasil, as Linhas Vermelha e Amarela e ainda tem saída para a Baía de Guanabara — Foto: Reprodução/TV Globo

O complexo de favelas é próximo principais vias expressas do Rio: Linhas Vermelha e Amarela, além da Avenida Brasil. A comunidade também está no caminho para o Aeroporto Internacional Tom Jobim, o Galeão.

Para a polícia, o acesso da comunidade ao Canal do Cunha é mais uma facilidade a mais para as quadrilhas da região, que conseguem uma saída para a Baía de Guanabara.

"Esse deslocamento pela baía acontece em pequenas embarcações, via de regra para transportar armas de um lugar para o outro ou para transportar drogas, chegando drogas, distribuindo droga para Baixada Fluminense, para região de Niterói e de São Gonçalo", explicou o delegado Marcus Amim, titular da Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos (Desarme).

Diferentes crimes das quadrilhas da Maré

Vídeo mostra assalto no Leblon, Rio

Vídeo mostra assalto no Leblon, Rio

Um carro foi roubado em maio na rua José Linhares, no Leblon, na Zona Sul do Rio (veja no vídeo acima). De lá, foi levado para a favela Parque União, no interior da Maré. Segundo a polícia, é onde funciona um dos esquemas de desmanche de veículos.

No início de agosto, outra quadrilha, do mesmo ramo, foi presa na Linha Amarela, depois de trocar tiros com a polícia durante um arrastão.

Também em agosto houve dois sequestros-relâmpagos. Um no dia 4 e outro no dia 13, no bairro de Higienópolis, na Zona Norte da cidade. As vítimas foram levadas para o interior da Vila do João e da Vila dos Pinheiros, enquanto criminosos faziam saques em caixas eletrônicos.

Já da comunidade da Nova Holanda, os bandidos miram centros de distribuição em busca de telefones celulares e outros eletrônicos.

A delegacia de Bonsucesso, responsável pela área, catalogou, pelo menos, 80 ataques nos últimos três anos. As ações resultaram em um prejuízo de R$ 150 milhões.

Em abril de 2010, o alvo foi o terminal de cargas do Aeroporto Internacional do Rio. Três bandidos renderam os funcionários e levaram milhares de smartphones de última geração que ainda nem tinham sido lançados.

Há quatro meses, houve um ataque ao centro de distribuição das Lojas Americanas, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Na fuga, os criminosos trocaram tiros com a polícia. Um home foi preso.

Em junho, outro roubo: em Duque de Caxias, no depósito do Grupo Pão de Açúcar. Cerca de 30 assaltantes participaram do crime usando fuzis. Na ação, um vigilante morreu e dois ficaram feridos. A carga de eletrônicos era avaliada em R$ 15 milhões.

O material roubado é levado para a favela, onde é separado e muitas vezes vendido. A receptação acontece em qualquer lugar, até na porta de uma creche, como mostrou o RJ2.

Nas ruas, há feiras com aparelhos de ar condicionado, barbeadores e alimentos, segundo indica outra investigação da Delegacia de Roubos e Furtos. Agências bancárias também são alvo das quadrilhas, na Região Metropolitana do Rio e até em outros estados.

Em agosto, houve um ataque em Juiz de Fora, em Minas Gerais, quando assaltantes roubaram R$ 40 mil, mas acabaram presos.

"Os bandidos procuram traficantes da Maré, tanto para se esconder lá, para usar material humano, usar apoio nas suas ações, e também, principalmente, para usar material bélico daquela região, como uma forma de consignação", afirmou Amim.

A venda de drogas continua alimentando financeiramente as quadrilhas. Em julho, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a Polícia Civil apreenderam cinco toneladas de maconha na Via Dutra. A carga vinha de Dourados, em Mato Grosso do Sul, para abastecer as bocas de fumo da Nova Holanda.

Arma de guerra e mais de 300 fuzis

No início de agosto, a Polícia Rodoviária Federal apreendeu mais de 40 armas na Via Dutra. O material saiu do Paraguai e estava a caminho da Vila dos Pinheiros, que também fica na Maré.

Metralhadora de guerra .50, usada por traficantes na Maré — Foto: Reprodução/TV Globo

Em um baile na Vila do João, bandidos foram filmados uma metralhadora calibre ponto 50 no meio do público. A arma de guerra tem alto poder de destruição e alcance de quase dois quilômetros.

Segundo especialistas, o fuzil é capaz de furar um blindado da polícia e até de derrubar aviões pequenos e helicópteros. Os traficantes na gravação também carregam fuzis.

"A gente tem mapeadas pelo menos cinco fuzis, calibre .50 como aquele que aparece na imagem. [Há] Por volta de 300 a 350 fuzis ali. Fuzis. Fora pistolas, revólveres metralhadoras, escopetas, outros tipos de armas", afirmou Amim.

Criminosos identificados

Leandro de Souza Nunes, o "Pequeno": polícia diz que ele é segurança do crime organizado na Maré — Foto: Reprodução/TV Globo

Quem segura a metralhadora ponto cinquenta, segundo as investigações, é Leandro de Souza Nunes, o "Pequeno". A polícia diz que ele é segurança do crime organizado na Vila do João, na Baixa do Sapateiro e em outras quatro favelas.

Em novembro do ano passado, Leandro chegou a ser preso com um carro roubado mas pagou fiança e foi liberado. Na filmagem, Leandro escolta um dos chefes da quadrilha, Thiago da Silva Folly, o TH, que também aparece nas imagens.

Um dos chefes de quadrilha que age na Maré, Thiago da Silva Folly, o TH — Foto: Reprodução/TV Globo

Outro traficante que aparece no vídeo escoltado por "Pequeno" é Michel de Souza Malveira, o "Bill", ou César. Ele veste um cordão que faz apologia ao tráfico de drogas e tem o mapa do Complexo da Maré dentro do mapa do Brasil.

Michel também usa uma peça de ouro, cravejada de brilhantes, que segundo a polícia foi presente de "TH".

Michel de Souza Malveira, o "Bill" ou César, traficante da Maré — Foto: Reprodução/TV Globo

Prisão em 2012

Cordão de Bill faz apologia ao tráfico de drogas e tem o mapa do Complexo da Maré dentro do mapa do Brasil — Foto: Reprodução/TV Globo

Bill passou oito anos preso depois de trocar tiros com a polícia no pedágio da Linha Amarela, em 2012. Há três meses, deixou a cadeia pela porta da frente, com um alvará de soltura nas mãos. A saída foi comemorada com foguetório.

Luiz Carlos Lomba, o "Chocolate", é o quarto na fila do baile. É velho conhecido do crime e hoje atua como químico nos laboratórios de drogas da quadrilha. A casa dele tem piscina e até teto retrátil, segundo investigações da Polícia Civil.

Luiz Carlos Lomba, o "Chocolate", atua como químico nos laboratórios de drogas de quadrilha da Maré — Foto: Reprodução/TV Globo

Integrante de quadrilha que age na Maré, segundo a polícia: Alexandre Ramos do Nascimento, conhecido como "Pescador" — Foto: Reprodução/TV Globo

O quinto da fila é Alexandre Ramos do Nascimento, conhecido como "Pescador". De acordo com a polícia, esses homens se exibem e usam os bailes pra aumentar os lucros com a venda de drogas.

A Polícia Civil diz que eles são uma pequena parte de milhares de bandidos que controlam as 16 favelas da Maré.

Histórico de falhas no combate à violência

O RJ tem um histórico de falhas no combate à violência no Complexo da Maré. Há 17 anos, o batalhão da Polícia Militar foi inaugurado às margens do conjunto de favelas

"A Polícia Militar vai estar aqui para dar proteção à toda a população", disse o então secretário de Segurança do RJ, o ex-governador Anthony Garotinho.

O batalhão não aproximou a polícia das comunidades. A entrada do quartel é pela Linha Vermelha e, nos fundos, há um portão de acesso à Nova Holanda.

Cerca de 11 anos depois, as Forças Armadas ocuparam o complexo de favelas. A ideia era que os militares fossem substituídos por uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).

Ao todo, 23 mil militares se revezaram na chamada Operação São Francisco. Houve denúncias de abusos cometidos contra moradores e também ataques a tiros contra as tropas. Em um ano e três meses de ocupação, 27 soldados ficaram feridos. Um morreu.

As unidades de saúde passaram quase um mês fechadas. Os alunos ficaram 24 dias sem aulas ao longo de todo o ano.

(Nota da redação: o título desta matéria foi alterado às 22h30)

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