17/09/2011 07h36 - Atualizado em 17/09/2011 07h36

O metabolismo de uma floresta e de uma cidade: as carvoarias do Maciço da Pedra Branca no Rio de Janeiro

Os carvoeiros de meados de século XIX eram, em sua maioria, ex-escravos

Por Por Rogério Ribeiro de Oliveira, Joana Stingel Fraga e Dean Berck * Rio de Janeiro

Globo Universidade: Maciço da Pedra Branca (Foto: Divulgação)Rogério, Joana e Dean pesquisam o Maciço da
Pedra Branca (Foto: Divulgação)

Não era nada fácil o trabalho daqueles homens. Os carvoeiros de meados de século XIX tinham que trabalhar noite e dia nas matas do Maciço da Pedra Branca, localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Eram, em sua maioria, ex-escravos que tinham conseguido a sua alforria, seja porque as compraram, seja porque foram libertos pela igreja, bem antes da Lei Áurea.

Sem a subsistência provida pelos seus donos, estes ex-escravos se viram, de uma hora para outra, tendo que sustentar a si mesmos e suas famílias. Sem acesso à terra ou aos meios de produção, um caminho “fácil” foi se tornar carvoeiro. A partir do século XVIII, a Zona Oeste do município do Rio de Janeiro era conhecida como a planície dos onze engenhos. A atividade de produção de açúcar ocupava a maior parte da mão de obra. Possivelmente, a proximidade deste maciço com a cidade do Rio de Janeiro foi responsável por transformar a floresta em um polo de fabricação de carvão. Lenhadores e carvoeiros penetravam por toda a parte nas serranias do Rio de Janeiro, onde não se tinham estabelecido os sitiantes.

Globo Universidade: Maciço da Pedra Branca (Foto: Divulgação)Corte do terreno para construção do balão de carvão
(Foto: Divulgação)

Com a abolição da escravatura, os ex-escravos, quilombolas e pequenos agricultores viram no fabrico do carvão uma atividade possível. Para isso, tudo o que precisavam era de uma enxada, um machado e uma pederneira (tipo de isqueiro). Com esses três objetos era possível fabricar o carvão. Mas como isso era feito? A primeira coisa era estar próximo a uma fonte de lenha. O Maciço da Pedra Branca, com uma vasta floresta, localiza-se justamente na vizinhança da planície dos onze engenhos. O suprimento de lenha estava garantido. Mas para se fabricar o carvão era necessário ter uma área plana onde a carvoaria pudesse ser instalada, já que a produção do carvão era feita na própria floresta. A construção do balão de carvão exigia a limpeza e o aplainamento da área, que eram feitos com o auxílio de enxadas, conforme a imagem acima.

Globo Universidade: Maciço da Pedra Branca (Foto: Divulgação)Ruína de uma das moradias (Foto: Divulgação)

O balão de carvão era um cone de lenha empilhada com cerca de 3,5 metros de altura e revestido de barro. Assim, a queima da lenha era abafada e esta se transformava em carvão, em um processo que durava quase três dias. Mas a queima da lenha era um processo que exigia atenção dia e noite, pois o carvoeiro devia controlar a ventilação vedando ou abrindo as espias (respiros), para que não acelerasse a combustão e, não perdesse, assim, toda a produção. Como a exploração era praticamente em todas as encostas do Maciço da Pedra Branca era preciso que os carvoeiros morassem por perto. É muito comum encontrar ruínas de antigos casebres próximos às carvoarias, hoje todos recobertos pela floresta secundária.

Uma pesquisa feita por nós no Maciço da Pedra Branca revelou a existência de 28 ruínas de moradias e 157 platôs de antigas carvoarias. No entanto, apesar do grande desmatamento realizado pelos carvoeiros e lenhadores, a floresta voltou graças à eficiente sucessão ecológica que ocorreu após o desmatamento. Hoje, essas carvoarias e ruínas estão irreconhecíveis, completamente tomadas pela vegetação. A paisagem recompôs-se quase que inteiramente, apesar do uso intenso do passado. Voltou de forma tão intensa que em 1974 foi criado o Parque Estadual da Pedra Branca, justamente nessa área.

Deve existir sob a floresta uma quantidade muito maior de antigas carvoarias do que as 157 que encontramos. A pergunta natural é: para que tanto carvão? Este era, junto com a lenha, a matriz energética da cidade do Rio de Janeiro de meados do século XIX até o início do século XX. Além do consumo doméstico (como cozinhar e passar roupas), o carvão alimentava também as caldeiras a vapor das indústrias que começavam a aparecer, e também as locomotivas da estrada de ferro. Na cidade, carruagens e bondes eram puxados por cavalos e burros. Não se pode pensar que esses animais pudessem desempenhar este trabalho nas ruas calçadas de pedras sem ferraduras. Estas eram feitas nas ferrarias de fundo de quintal, cujas forjas funcionavam a carvão.

Globo Universidade: Maciço da Pedra Branca (Foto: Divulgação)Pórtico de construção do século XVII feito em
gnaisse facoidal (Foto: Divulgação)

Mas havia também outro uso pouco conhecido, mas que devia consumir muito carvão: a construção civil. Até hoje o centro histórico da cidade, assim como numerosos bairros, têm suas calçadas de pedra, além dos pórticos e fachadas dos sobrados antigos.

Não parece, mas a quantidade de carvão usado na arte da cantaria (trabalhos de pedra talhada para produção de paralelepípedos ou qualquer outra forma) é gigantesca. Por exemplo, para se construir um metro do portal como o que se vê na figura ao lado, o artesão usa uma marreta e cerca de 30 ponteiros de ferro, que ficam rapidamente cegos e não podem ser afiados em esmeril para não perder o fio. Têm que ser levados à forja para serem malhados na bigorna. Essas forjas, alimentadas a carvão se multiplicaram para dar conta do crescimento da construção civil da cidade na virada do século XIX. Não era, portanto, desprezível o consumo de carvão no Rio de Janeiro do fin de siècle.

Metabolismo social: a paisagem juntando a floresta e a cidade

As florestas podem ser consideradas como um território, ou seja, o espaço vivido e apropriado pelos carvoeiros. Mas nesse fluxo de trocas, um importante aspecto se apresenta: o metabolismo social. Esse termo é utilizado em analogia ao metabolismo biológico e diz respeito às trocas de energia e matéria de uma sociedade com a natureza. A produção econômica da sociedade e os processos de consumo necessitam de insumos que geram fluxos de materiais e energia que, na sua totalidade, são chamados de "metabolismo social". Assim, o fluxo de energia e materiais necessários para o funcionamento de uma sociedade podem ser medidos, contabilizados e comparados ao longo das diferentes etapas de sua história. Neste aspecto, a paisagem é o resultado desses processos históricos de interação entre sistemas sociais e ecossistemas.

A pesquisa realizada constatou que as 157 carvoarias encontradas (como visto esse número está subestimado) foram responsáveis pelo desmatamento de uma área de cerca de 80 hectares de floresta para a produção de carvão. Um hectare equivale a um campo de futebol. O que se observa atualmente aí, porém, é uma enorme área florestada. Do total das carvoarias encontradas, apenas cinco (3,2%) estão em área aberta (capim). As demais, assim como todas as ruínas levantadas, encontravam-se em interior de floresta que se recompôs. As florestas tropicais possuem uma capacidade de regeneração muito grande, porém são muitos os fatores que influenciam nesta regeneração, tais como a intensidade do distúrbio, o tempo de regeneração, agentes dispersores de sementes (como vento, animais, água), vegetação remanescente circunvizinha, entre outros. Os estudos demonstraram que pode ter havido perda de espécies, mas a funcionalidade da floresta foi recuperada.

Dessa forma, a questão do metabolismo que se coloca é que a floresta do século XIX/XX importava à cidade como a fonte material que fornecia energia para suprir as demandas sociais “desde a choupana mais humilde à mais importante indústria”, como nos descreve o escritor Magalhães Corrêa, em 1933. O crescimento da então capital federal dependia necessariamente desta fonte “alimentícia”, assim como um organismo vivo, que necessita de alimento para gerar energia para seu desenvolvimento. Essas demandas direcionavam as relações da sociedade com a natureza ao seu redor, vista à época essencialmente como fonte de recursos essenciais. A conexão entre cidade e floresta se dava pelo paradigma energético utilizado. Apesar de a floresta ter se recuperado devido ao processo de sucessão ecológica ocorrido após o abandono destas atividades, o ecossistema passou a guardar marcas dessa história em numerosos de seus atributos.

As implicações ecológicas da exploração da lenha para a produção de carvão não tiveram efeitos negativos expressivos. Devemos ter em mente que isso se deveu, porém, a uma conjunção de fatores ao longo do tempo. A mudança da matriz energética (a entrada dos combustíveis fósseis), outra visão de natureza (não apenas como recurso, mas como algo a ser valorizado), avanços tecnológicos que permitiram que as necessidades materiais e energéticas da cidade venham de distâncias muito maiores do que há 100 ou 200 anos, transformaram a sociedade e também a sua relação com a floresta.

Mas há um desfecho nessa história ligado à sustentabilidade. Como vimos, apesar do desmatamento, a sustentabilidade ecológica do período de fabricação do carvão foi um fato concreto. Mas, e a sustentabilidade social dessa atividade? São pouquíssimas as informações disponíveis sobre estes atores sociais, que forneciam energia à cidade do Rio de Janeiro. Os carvoeiros em muito pouco se beneficiaram do seu trabalho, enquanto que muitos lucraram com ele. São até hoje invisíveis do ponto de vista social. Dessa história, o único documento que eles nos deixaram foram marcas na paisagem, hoje transformada em parque.

*Rogério Ribeiro de Oliveira é professor da PUC-Rio e pesquisador de História Ambiental da Floresta Atlântica. Joana Stingel Fraga é geógrafa pela PUC-Rio e pesquisadora de História Ambiental e Ecologia Histórica. Dean Berck é mestrando em Geografia pela PUC-Rio. Sua área de pesquisa é a história ambiental da caça.

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