BRASÍLIA — Apesar da redução do número de pessoas nas ruas, por causa da pandemia de coronavírus, a violência policial atingiu um pico no país em março e abril, primeiros meses com as restrições impostas para minimizar o contágio. Um levantamento feito pelo GLOBO junto às secretarias estaduais de Segurança aponta que houve 1.198 mortes em decorrência de intervenções policiais no bimestre, 26% superior às 949 contabilizadas no mesmo período do ano passado.
O aumento foi alavancado por abril, que registrou 719 mortes, frente a 477 em 2019 — houve crescimento em dez estados, queda em três, e em dois os números ficaram estáveis. O volume expressivo de mortes por ações da polícia em abril fez com que o primeiro quadrimestre do ano superasse o do ano passado — até março, os dados indicavam uma queda em 2020. Já o volume total de crimes violentos letais intencionais (homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte) cresceu 8% em abril frente ao mesmo período de 2019, segundo o “Monitor da Violência” , do G1.
Mudança: Após crises, Bolsonaro sinaliza pacificação com Poderes
Episódios recentes de violência em São Paulo levaram o governador João Doria (PSDB) a determinar que os policiais militares passem por novo treinamento . As mortes provocadas por agentes de segurança cresceram 22% no estado em março e abril de 2020, em comparação com o período semelhante do ano passado. No ano todo, o crescimento foi de 31% em relação a 2019, contra uma subida de 8% em todo o país.
O levantamento reuniu dados de 15 unidades da federação, que correspondem a 72% da população do país. As informações foram obtidas em publicações das secretarias de segurança e nos diários oficiais. Nos casos em que os dados não haviam sido tornados públicos, os governos foram questionados por e-mail. Dez estados não informaram os dados — o Rio Grande do Sul afirmou que a reportagem só conseguiria acesso caso fizesse um pedido via Lei de Acesso à Informação, que estabelece um prazo de um mês para o envio. Minas Gerais enviou as informações fora do padrão mensal, o que impossibilitou comparações. Os dados de Goiás têm como fonte o jornal “O Popular”, que teve acesso a um relatório sigiloso da Secretaria de Segurança do estado.
Especialistas apontam razões diversas para o crescimento da violência policial. Um dos pontos levantados é a redução da “vigilância social”, com a menor circulação de pessoas, o que pode ter “encorajado” comportamentos mais violentos de policiais. No Rio, o isolamento provocou uma mudança na dinâmica das operações nas favelas, com a polícia buscando retirar os suspeitos de suas casas, o que tende a provocar mortes também de inocentes. No Ceará, o crescimento das mortes em confronto ocorreu depois do aumento do número de homicídios registrado no período da greve dos policiais militares.
Diferentes fatores
O coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques, afirma que o esvaziamento das ruas teve um peso no aumento:
— Temos um menor nível de controle social da atividade da polícia quando há menos gente na rua. Nos últimos anos, cresceram os registros em vídeo de abuso por parte das forças policiais. Em meio a uma pandemia, em alguma medida, há redução das pessoas na rua, diminuindo esse controle social.
Sebastião Salgado: 'A Funai não tem o direito de leiloar as minhas fotos', diz fotógrafo
Já a diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso, pontua que diferentes realidades nos estados fazem com que não haja explicação única para o país inteiro.
— Uma das consequências pode ser a redução do patrulhamento. Com menos efetivo na rua, aumenta o medo do policial, que reage de maneira inesperada. Os dados mostram uma polícia sem controle. É indicativo de que o comando está perdendo a ascendência sobre a tropa ou que está incentivando esse processo.
Michel Misse, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que o isolamento social trouxe nova dinâmica para as ações policiais:
— Numa situação em que há a recomendação para que as pessoas fiquem em casa, ou evitem contato físico, não é possível fazer uma operação como se fazia antes. As forças policiais buscarão desalojar os suspeitos de dentro das casas, o que pode gerar um número maior de mortes. É o pior dos mundos, porque essa população já está em uma situação de vulnerabilidade em relação ao vírus — aponta.
Uma liminar do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu as operações policiais em comunidades durante a pandemia. O governo do Rio recorreu, e o tema está sendo analisado pelo plenário.