Cultura

Ação de despejo ameaça Cia. Pessoal do Faroeste, grupo teatral que combate a fome na Cracolândia de SP

Com dívida de R$ 200 mil, companhia pode ter que deixar a sua sede em 15 dias; na pandemia, local funciona como centro de distribuição de alimentos e utensílios para famílias sem teto
Fila diante da sede da Cia. Pessoal do Faroeste, na segunda (10), durante a distribuição de kits de higiene Foto: Luca Meola / Divulgação
Fila diante da sede da Cia. Pessoal do Faroeste, na segunda (10), durante a distribuição de kits de higiene Foto: Luca Meola / Divulgação

SÃO PAULO - Acostumada a ajudar quem não tem teto, a Cia. Pessoal do Faroeste, ironicamente, pode acabar ela mesma sem a sua sede, em São Paulo. O grupo teatral recebeu uma ordem de despejo devido a uma dívida de R$ 200 mil em aluguéis. Sem patrocínio há um ano, tem sido impossível pagar a conta, de R$ 10 mil mensais, diz o diretor, Paulo Faria. O prazo para deixar o local é de 15 dias.

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Fechado para as atividades teatrais durante a pandemia, o espaço, na Rua do Triunfo, virou, desde abril, a base de uma campanha chamada #FomeZeroLuz, em referência ao nome do bairro, no centro da capital paulista. A iniciativa, elaborada por Faria, cadastrou mil famílias da região da Cracolândia que dependem de cestas básicas para sobreviver. Cerca de metade delas é de imigrantes, conta o diretor.

Para amparar todas, o projeto precisa de R$ 40 mil por mês (porque cada cesta tem custo de R$ 40). Os recursos vêm de doações de pessoas físicas e de fundos de ONGs. Uma das madrinhas da ação é a atriz Mel Lisboa , que trabalhou em uma série de montagens do grupo.

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Na última terça (11), um pouco antes de o oficial de Justiça chegar com a ordem de despejo, os voluntários estavam distribuindo, além de alimentos, outros itens cada vez mais necessários na região, barracas e sacos de dormir. Segundo Faria, de algumas semanas para cá os despejos se tornaram frequentes nos imóveis vizinhos, muitos deles onde funcionam cortiços.

— Nós fomos ingênuos. Não esperávamos que, no meio da pandemia, fôssemos passar por isso, porque temos uma ação humanitária aqui. Mas a Justiça só vê a propriedade, não o uso social do espaço — afirma o diretor, que fundou a companhia há 22 anos. — Agora mesmo eu deveria estar focado na distribuição das cestas, mas estou envolvido nessa ação de despejo — lamenta.

Fila diante da sede da Cia. Pessoal do Faroeste, na segunda (10), durante a distribuição de kits de higiene Foto: Luca Meola / Divulgação
Fila diante da sede da Cia. Pessoal do Faroeste, na segunda (10), durante a distribuição de kits de higiene Foto: Luca Meola / Divulgação

E nem é a única ação do tipo que ele teve que enfrentar recentemente. Também nos últimos dias, recebeu o aviso para deixar o próprio apartamento, alugado em um edifício a poucas quadras do teatro. Sem condições de colocar o pagamento em dia, já que não tem rendimentos desde março, entregou as chaves e passou a morar dentro da sede da companhia.

Contra o tempo

Para evitar o despejo do imóvel principal do teatro (além dele, há também um ateliê na Rua General Osório, com o aluguel igualmente atrasado, de R$ 2 mil por mês, mas sem cobrança judicial), Faria conta com a ajuda de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que inclusive tem um balcão de atendimento dentro da sede para auxiliar moradores da região em suas causas.

— Queremos sensibilizar o juiz e pedir um prazo maior. Enquanto isso, estamos abrindo várias frentes para arcar com a dívida — explica ele, que diz ter recebido também orientações do advogado do vereador Eduardo Suplicy (PT).

Uma das frentes é uma vaquinha on-line , com meta de R$ 220 mil, colocada no ar na tarde desta quinta-feira. Outra é a pressão para que os recursos de um edital municipal vencido pelo grupo sejam liberados em breve.

— Nós fomos contemplados em um edital da Prefeitura de São Paulo para espaços independentes. Seriam R$ 12 mil por mês, mas a verba está atrasada. É uma verba emergencial, mas tudo está parado no processo burocrático, assim como a Lei Aldir Blanc — diz o diretor. Uma reunião com o secretário municipal de Cultura, Hugo Possolo, já foi agendada.

Outra via que o grupo busca é a de uma desapropriação. Eles vão pleitear na Justiça um contrato de comodato, a exemplo do que o Teatro Oficina tem para a sua sede no Bixiga. Uma petição on-line já foi criada para pedir apoio à ação. O edifício faz parte de um conjunto de construções antigas da chamada Boca do Lixo, região que foi um polo cinematográfico de São Paulo dos anos 1960 aos 1980.

As dívidas com o aluguel passaram a ser um problema grande para a companhia há quase três anos, conta Faria. Em março de 2019, quando sofreram pela primeira vez uma ameaça de despejo, conseguiram zerar a conta entregando a verba completa de dois patrocínios. A partir daí, a situação se agravou porque o grupo não tem patrocinador desde agosto do ano passado.

— Apesar de tudo isso, nós fazemos parte do Brasil que deu certo. A Cracolândia é um território em disputa, é uma guerra diária, mas a solidariedade é incrível aqui — conclui ele, cujo trabalho social foi reconhecido no Prêmio Shell em 2014, na categoria de Inovação.