Por RFI


Membros das forças armadas sul-africanas observam enquanto um policial revista um homem durante uma patrulha em toque de recolher noturno em meio a um bloqueio nacional para prevenir o contágio da Covid-19 em Joanesburgo, na África do Sul, na segunda-feira (13) — Foto: Siphiwe Sibeko/Reuters

Certo de que o pior momento da pandemia chegou, o governo sul-africano divulgou que o novo coronavírus já infectou 311.049 pessoas no país. Só no último mês, a quantidade de casos cresceu 323% sendo que, ao todo, 4.453 pacientes morreram.

Depois de ter contido o quanto pode a pandemia com um bloqueio precoce, que vem mortificando a economia local, o presidente Cyril Ramaphosa se deu conta da velocidade do crescimento dos números e foi enfático em seu último discurso para a nação: "a tempestade está sobre nós!", disse.

Pouco mais da metade dos infectados já se recuperou (160.693), boa parte sem ter precisado de hospitalização, segundo o presidente. No país que até agora confirmou mais casos em todo o continente africano (641.105), e que está em quinto lugar na lista de países com mais pacientes que ainda não se curaram no mundo todo, a partir de agora não se pode mais sair de casa entre 9h da noite e 4h da manhã por causa do toque de recolher, medida reestabelecida para coibir as atividades noturnas e o consumo de álcool, segundo o ministro da Saúde, Zweli Mkhize.

Bastou o presidente sul-africano proibir de novo a venda de bebidas alcoólicas no país para comerciantes do setor fecharem as portas, prevendo prejuízos ainda maiores. E não só porque não podem mais vender seus estoques. Muitos já dão como certo o aumento dos saques, como aconteceu nas primeiras semanas do confinamento nacional obrigatório, que começou no fim de março.

Uma mulher passa por uma loja de bebidas fechada em Soweto, na África do Sul, na segunda-feira (13) — Foto: Michele Spatari/AFP

O pronunciamento do presidente com as novas determinações foi no último domingo e já na terça-feira de manhã, bem cedo, um comerciante da Cidade do Cabo entrava na própria loja depois dela ter sido invadida por assaltantes que esvaziaram a prateleira de uísques. Destruíram a porta de barras de ferro na entrada usando uma corda e um carro. No primeiro mês do confinamento, dezenas de saques foram registrados na Cidade do cabo.

Em março, a comercialização de bebidas alcoólicas foi proibida. Segundo o governo, até o mês de maio, as emergências viram o número de hospitalizações cair 60%. Até que, no início de junho, a África do Sul voltou a permitir o comércio deste tipo de mercadoria. Mas o governo diz que decidiu proibir de novo porque, em um mês, aumentaram muito os acidentes de trânsito, brigas com feridos e casos de violência doméstica, quase sempre envolvendo pessoas embriagadas. Isso fez com que emergências de hospitais recebessem 60% mais pacientes. A quantidade de leitos de UTI ocupados praticamente triplicou nas últimas semanas.

Beber, só em casa

Está permitido beber, mas não em locais públicos. Quem desrespeitar a regra pode ser preso. Atualmente o confinamento obrigatório sul-africano está no nível 3 (numa escala que começou no nível 5). A brasileira Amanda Nascimento dos Santos, que mora em Centurion e administra um escritório de advogados no país, disse que ainda está vivendo como se o confinamento tivesse no nível máximo. Ela teme pela própria saúde e segue trabalhando de casa, saindo apenas quando é realmente necessário. Disse que concordou com a volta da proibição de venda de bebidas alcoólicas.

“Eu achei necessário porque aqui na África do Sul, infelizmente, o pessoal gosta muito de beber. Com as pessoas bebendo mais, quem estava indo parar nos hospitais estava pegando lugar de pessoas que poderiam chegar com o coronavírus precisando de um leito e não teria”, disse.

Ramaphosa ainda anunciou que atualmente a África do Sul dispõe de 37 mil leitos em unidades públicas, particulares e hospitais de campanha, o que significa que o país criou mais de 28 mil deles nos últimos meses. O presidente também ressaltou que a África do Sul precisa de 12 mil profissionais de saúde a mais.

Os relatórios oficiais atualizados diariamente não trazem mais dados sobre o número de dos infectados nas UTIs. A imprensa não tem tido acesso às unidades de saúde. A reportagem esteve em frente a algumas delas, em Joanesburgo

Do lado de fora, há pouco movimento. No Helen Joseph Hospital, unidade pública que fica no bairro Auckland Park, é possível ver uma grande tenda de lona branca montada do lado do prédio principal. Sem saber que conversava com um jornalista, uma enfermeira disse que havia trabalhado bastante, pois há muita gente com sintomas internada na unidade.

Sindicatos de profissionais de saúde têm demonstrado muita preocupação com a pressão psicológica que as equipes vêm sofrendo, a falta de profissionais e estrutura inadequada para se enfrentar melhor a pandemia, correndo o risco do sistema entrar em colapso.

Loja de bebidas Liquor City é vista fechada em Craighall Park, Joanesburgo, na África do Sul, nesta segunda-feira (13) — Foto: Michele Spatari/AFP

A brasileira Amanda também disse acreditar que a proibição do comércio de bebidas alcoólicas poderá aliviar o trabalho das equipes médicas, mas não deverá ser muito eficaz. “Como aconteceu na fase 5, mesmo proibidos, alguns lugares estavam vendendo bebidas clandestinamente. Tinham pessoas até mandando mensagens no Whatsapp com os preços e os valores eram um absurdo, quatro ou cinco vezes a mais”, destacou.

O governo informou que para tomar essa decisão se baseou também em um estudo da Organização Mundial de Saúde (Global Status Report on Alcohol and Health 2018), que estimou que 31% dos sul-africanos com mais de 15 anos de idade consumiam bebidas alcoólicas. Apesar de considerar o percentual não muito alto, o ministro da Saúde disse que a África do Sul é um dos países da África Subsaariana que mais consomem bebidas alcoólicas.

Medida é justificada, diz brasileira

Para a agente de viagens brasileira Kika Ermel, que vive no país há mais de 13 anos, a medida é justificável, mas até certo ponto. “Isso me parece um exagero, porque o problema de alcoolismo na África do Sul é estrutural. Ou seja: não é de agora”, disse. Para ela, o “o lockdown está longo demais” e o governo sul-africano está usando um padrão europeu para um país que não tem o mesmo cenário.

A empresária brasileira diz que está bastante preocupada é com a falta de atenção com o Turismo, setor responsável por quase 10% do Produto Interno Bruto da África do Sul. “Em questão de viagens interprovinciais: como isso está sendo feito e manejado pelo governo é péssimo. Acho que o governo não está lidando bem com isso. Em termos turísticos, 60% do faturamento está entre setembro e março", diz. "Se isso (a retomada das atividades) não acontecer a partir de setembro, a recuperação vai ser muito mais difícil. Isso me parece uma falta de visão do governo, do ministro do Turismo, das pessoas responsáveis, porque em termos de protocolo, os lodges estão extremamente preparados”, observou.

Regras para vans

A reportagem esteve também na região central de Joanesburgo, onde já se vê vans cheias novamente, como antes do presidente impor medidas restritivas de circulação. Mas agora as janelas dos veículos têm que estar parcialmente abertas e todo mundo dentro das vans precisa cobrir a boca e o nariz. Os motoristas só podem rodar com as vans lotadas se as viagens forem curtas. Nos trechos mais longos a capacidade máxima é de 70% dos lugares disponíveis.

As vans devem ser limpas diariamente e cada motorista precisa se certificar de que, quando houver fila do lado de fora, as pessoas manterão o distanciamento de um metro entre elas. Nas redondezas do bairro Braamfontein, popular entre universitários, lojas de bebidas estão fechadas.

Nos pontos finais das vans, passageiros usam máscaras coloridas feitas com tecidos africanos. Van é o tipo de transporte usado por boa parte da população mais pobre numa cidade que parece não ter sido projetada para pedestres. Normalmente os motoristas só saem do ponto final quando todos os assentos estão ocupados. Não há cobrador. Aqui, passa-se o dinheiro de mão em mão até chegar ao motorista, que, enquanto dirige, checa os pagamentos e dá - ele mesmo - o troco quando necessário.

Quase todo mundo que usa van em Joanesburgo vive em áreas periféricas, superpopulosas, onde nem sempre se tem água em casa para se lavar as mãos. Essa é a realidade de quase metade da população urbana do país, o mesmo que cerca de 18 milhões de pessoas, segundo o UNICEF. Com as vans podendo circular lotadas novamente, a venda de bebidas alcóolicas pode até estar proibida de novo, mas definitivamente não o uso de álcool em gel, se o país quiser mesmo vencer essa.

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