LISBOA E MARINALVA (PORTUGAL) - Três senhoras conversando no portão formam a maior aglomeração à vista nas ruas desertas e sinuosas de Marialva. À primeira impressão, parece que o confinamento imposto pela pandemia continua na aldeia de casas seculares e 255 habitantes.
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Tranquilo e ainda pouco explorado, este ponto histórico da região central de Portugal se tornou um dos destinos que o governo promove na tentativa de minimizar danos econômicos causados pelo coronavírus no turismo, que responde por quase 15% da economia do país.
Com as restrições para a entrada de turistas estrangeiros como americanos e brasileiros (as duas nacionalidades de fora da Europa que mais visitam o país), Portugal criou a campanha #tupodes para estimular seus residentes a pegar a estrada para redescobrir a face rural — e sem aglomeração — do país.
Das ruínas do castelo medieval erguido no ponto mais alto, é possível ver Marialva isolada e cercada de natureza. Fincada nos arredores do município de Vila Nova de Foz Côa, tanto a aldeia quanto a cidade pertencem ao distrito da Guarda, com 25 mil habitantes e localizada a 300km de Lisboa e a 200km do Porto.
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Com apenas 82 casos de coronavírus em toda a pandemia, a região tem sido um dos imãs para quem busca segurança e distanciamento social sem abrir mão das férias. Enquanto Lisboa e Porto registram fuga de turistas com uma nova alta nos casos de Covid-19, destinos menos óbvios no Centro, Norte e Alentejo chegam a bater recordes de visitas.
— Estas regiões menos conhecidas dão alguma garantia aos consumidores, mas não significa que as demais não estejam preparadas para a reabertura. Do ponto de vista turístico, o que acontece é que estes turistas nacionais têm um perfil de procura por natureza, por áreas mais abertas neste pós-quarentena. Temos hotéis que dizem que esse foi o melhor verão de sempre — disse Luís Araújo, presidente do Turismo de Portugal.
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Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) informam que, em julho, foram mais um milhão de hóspedes na rede hoteleira, a maioria residentes (66,2%), e 2,6 milhões de pernoites.
A queda no movimento devido à pandemia, que chegou a quase 90% em junho, ficou em 64% em julho, em comparação ao mesmo período de 2019. Nos sete primeiros meses do ano, o turismo português faturou € 4,1 bilhões, bem distante dos € 18 bilhões somados em todo o ano passado.
— Um dado de que o turismo interno, que corresponde a um terço do turismo total de Portugal, respondeu bem: o número de despesas feitas em cartão de crédito no verão é praticamente igual ao de 2019, com um decréscimo de apenas 3%. E estamos comparando com 2019, o melhor ano de sempre. Apelamos pela solidariedade nacional ao turismo, para que os portugueses pudessem ir experimentar seu país. E eles têm ido — diz Araújo.
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Ao pé das ruínas do Castelo de Marialva, as Casas do Côro formam um complexo hoteleiro de 31 habitações inseridas na paisagem rural. Com a atual demanda por unidades isoladas, repletas de atividades individuais ou em pequenos grupos, cercadas de natureza e com possibilidade de amplo espaço aberto para a convivência dentro das diretrizes de distanciamento social da Direção Geral da Saúde (DGS), o empreendimento teve um pós-quarentena surpreendente.
Em comparação com 2019, registrou perdas de 52% em junho, reduziu para 10% em julho e, em agosto, já está com reservas 2% acima da registrada no mesmo período do último ano.
— Sou um otimista, tenho que ser. Penso que as coisas vão sempre melhorar, porque não aguentamos outro confinamento — diz Paulo Romão, proprietário há dez anos do complexo, que administra com a mulher, Carmen, e a ajuda dos cinco filhos.
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Durante os meses de confinamento, a empresa aderiu ao programa de subsídio do governo para pagamentos de salários de funcionários com contrato suspenso. O casal não despediu ninguém e agora até contratou mais cinco trabalhadores para dar conta da recente procura. Para o réveillon, 20% dos quartos já estão reservados, apesar de ter havido, em setembro, cancelamentos de eventos corporativos devido ao novo limite da DGS para grupos de pessoas que podem aglomerar: dez no máximo.
— Chegamos ao fim do verão e, a partir de agora, acredito que vai encher mais cedo que os outros anos para o réveillon, porque as regras de DGS estão mais apertadas, e aqui é possível cumpri-las sem prejudicar a reunião de família e amigos — diz Romão.
Para atender as regras da DGS, locais como as Casas do Côro criaram atividades que respeitam as medidas de prevenção sem atrapalhar o lazer e o descanso. Entre elas, estão os horários alternados e ao ar livre para o café da manhã, almoço e jantar, refeições sem esquema de bufês e pedidas com antecedência.
Os passeios nas vinhas são feitos em uma caminhonete antiga, recuperada e adaptada para os passageiros irem na caçamba e não ficarem trancados juntos no interior de um carro. O passeio de barco pelo Rio Douro, com direito a mergulho e degustação de vinhos de fabricação própria, estabelece divisões de grupos entre a popa e a proa para evitar aglomerações. Apesar do investimento em treinamento e das despesas extras de adequação, os preços não subiram, diz Romão:
— Estão iguais. Se fosse necessário mexer nos preços, era para ficar mais caro e nunca mais barato, porque temos um aumento de custos brutal.
Após meses confinados, portugueses e residentes priorizam expedições ao ar livre, com com segurança e distanciamento social. Uma opção na região é remar seis quilômetros em um caiaques pelas águas do Rio Côa para explorar o mais importante conjunto de gravuras rupestres paleolíticas ao ar livre do mundo, localizado dentro do Parque Arqueológico do Vale do Côa.
Entre julho e agosto, somados, o Museu do Côa e o Parque Arqueológico bateram recordes de visitas desde que foram criados, em 1996. Foram pouco mais de 20 mil entradas, 42% a mais que a marca anterior. Nesses dois meses, a receita foi de € 130 mil, enquanto em 2019 todo foi de € 94 mil. Só em agosto a alta no faturamento foi 58% maior que no mesmo mês de 2019.
— O estacionamento está lotado todos os dias — comena Fernando Dias, do Côa Parque, ressaltando que os preços ali também não subiram.
É de cima, do cesto de um balão alugado para sobrevoos em Monforte, que se vê o coração do Alentejo, região com menor perda no turismo (20%). É onde está a Torre de Palma, um hotel cinco estrelas com arquitetura e atividades adequadas para os tempos atuais.
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São 19 quartos com acessos independentes às áreas externas para evitar esbarrões nos corredores ou elevadores. A pandemia acelerou a digitalização da burocracia no check-in, que é feito virtual e antecipadamente, e nos demais pedidos à recepção, que fica em contato permanente no WhatsApp para deixar o hóspede mais livre e seguro.
Piquenique entre oliveiras
A queda no movimento durante o verão europeu foi de 15%, mas o mês de agosto foi melhor que o mesmo período de 2019, conta Luísa Rebelo, responsável pelo hotel, que reajustou o preço médio em €30.
— Concentrarmos tudo ar livre. O balão é um dos passeios mais espetaculares, mas tem que ir de máscara. São sempre casais e famílias em pequenos grupos. Também temos aulas de equitação com cavalos lusitanos, ciclismo... Mas foi o piquenique que virou tendência, assim como o café da manhã na varanda dos quartos, porque eliminamos o bufê e o hóspede escolhe onde e a que horas quer fazer as refeições. Tivemos uma procura gigante, porque as pessoas queriam estar isoladas num piquenique no meio das oliveiras. Tudo que é exclusivo ganhou importância.
Durante os meses de confinamento, a empresa recorreu à suspensão do contrato de funcionários, mas não despediu ninguém e se dedicou a planejar a reabertura seguindo as diretrizes de higiene da DGS e de sustentabilidade do Turismo do Alentejo. O hotel já está lotado para o 5 de Outubro, feriado da Proclamação da República Portuguesa, e começaram as reservas para o réveillon.
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Até do Brasil tem havido procura, mas o ingresso de brasileiros na alfândega ainda é exclusivo para situações essenciais e não há perspectiva de reabertura. Com alto contágio no Brasil, os brasileiros fazem falta ao turismo português porque são a quarta nacionalidade que mais visita Portugal, atrás de Reino Unido, França, Espanha e Alemanha.
Só entra quem tem cidadania europeia ou são residentes em Portugal, mas é preciso cumprir uma série de requisitos, que vão desde a autorização para trabalho, estudo ou reagrupamento familiar.
— Estamos em contato com agências no Brasil que dizem que os brasileiros, assim que o turismo for permitido, irão voltar. Nossos principais hóspedes eram brasileiros e norte-americanos e os portugueses eram 40%. Este ano são 80% portugueses e europeus — estima Rebelo.
Manuel Leite também estava habituado aos brasileiros. Diretor do Casa da Calçada, um dos principais hotéis de Amarante, no Norte, ele lamenta o cancelamento da versão portuguesa do festival de música Mimo, que nasceu no Recife, atrai turistas de todo o país no verão e, a princípio, voltará só em 2021. Mas a estação, que ameaçava ser desastrosa em termos econômicos, terminou equilibrada pelo turismo doméstico, ele diz:
— Foi o melhor agosto de sempre. Nunca tivemos um mês tão forte graças ao mercado português e um pouco do espanhol. Para se ter uma ideia, foi 5% acima de 2019, com 86% de ocupação nos 30 quartos.
Mesmo com este suspiro, Leite, que recorreu ao programa de acesso facilitado ao crédito do governo e não reajustou seus preços, não poderá manter todos os funcionários e parte dos contratos temporários não serão renovados. Tendo em vista o inverno, planeja concentrar as atividades do hotel e do restaurante Largo do Paço, premiado com uma estrela Michelin, de quinta a domingo, quando há mais procura. E criou atividades pra atrair clientes.
— Temos um carro de luxo, com motorista privado, que busca clientes no Porto para jantar. Mas também há passeios de caiaque no Rio Tâmega, de bicicleta, pacotes de fim de semana e estamos preparando o fim de ano, porque não podemos ficar parados, esperando o que ver o que vai acontecer — diz o empresário.
O turismo, que emprega 400 mil pessoas, foi um dos principais responsáveis pela recuperação da economia portuguesa da crise da década passada. O país foi eleito em 2019 pela terceira vez seguida o principal destino turístico mundial nos World Travel Awards. As receitas geradas pelo setor aumentaram mais de 60% desde 2015, passando de €11,5 bilhões para os €18 bilhões de 2019.
Consciente da importância de uma resposta rápida aos prejuízos da pandemia, o governo destinou, segundo a Turismo de Portugal, cerca de € 2 bilhões ao setor, incluindo medidas de apoio às empresas, linhas de financiamento, microempréstimos e moratórias.
O país foi o primeiro a implementar um selo de qualidade e segurança para certificar empresas de turismo que atendessem aos requisitos de higiene na pandemia. Atualmente, 20 mil empresas possuem o selo Clean & Safe.
* Especial para o GLOBO
(O repórter visitou Marialva a convite do Turismo de Portugal)