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Na Bolívia houve golpe, diz autor de ‘Como as democracias morrem’

Para Steven Levitsky, militares continuam sendo atores importantes na política latino-americana
Steven Levitsky
Steven Levitsky

RIO - A crise boliviana é um claro exemplo de como os militares continuam intervindo na política de muitos países e sendo, em momentos de crise, atores centrais. Trata-se, na opinião de Steven Levitsky , autor de “ Como as democracias morrem ”, de um padrão de comportamento que existe há mais de 200 anos, sobretudo na América Central e países andinos. O interessante, apontou Levitsky em entrevista ao GLOBO, é que “temos democracias deficientes, mas na América Latina não existe alternativa à democracia. Ninguém está na rua pedindo os modelos da China ou Rússia”.

Como vê a situação da Bolívia?

A Bolívia é um país com longa história de mobilizações contra governos constitucionais. Acho que Evo Morales errou no cálculo. Se tivesse respeitado a Constituição e saído depois do terceiro mandato teria passado para a História como o melhor presidente da Bolívia. Mas, primeiro, decide que quer um quarto mandato, faz um referendo, não respeita o referendo, o que é como insultar o povo. Todo mundo sabia que a Corte Constitucional (que autorizou a quarta candidatura) estava ocupada por aliados políticos. E, depois de tudo isso, cometem-se irregularidades na eleição, como apontam observadores e especialistas, o país mergulha numa crise delicada. Finalmente, sim, foi um golpe, porque o comandante das Forças Armadas sugeriu a saída do presidente. Mas temos de ver se será um golpe que fortalecerá a democracia ou a enfraquecerá.

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O senhor acredita que poderia fortalecer?

Não sabemos ainda. Dependerá do comportamento dos setores que chegarão ao poder, se houver uma eleição limpa. O que mais me preocupa é a perseguição contra o Movimento ao Socialismo (MAS). O MAS poderia, inclusive, ser proibido, como aconteceu no passado, por exemplo, com o peronismo. Se for assim, esse golpe enfraquecerá ainda mais a democracia.

O problema é político?

Sim, essencialmente. Mas houve fatores econômicos também. A bonança econômica deu muito poder a Morales, e ninguém deve estar no poder por tantos anos. Isso gera ambição de perpetuar-se. E isso foi possível pela bonança. Hoje, a Bolívia sofre os mesmos problemas que muitos países da América Latina e existe insatisfação. Por isso a popularidade do presidente caiu, por isso ele corria risco de perder e por isso a fraude.

Ex-presidente da Bolívia renunciou após ter sido reeleito em disputa eleitoral contestada pela oposição
Ex-presidente da Bolívia renunciou após ter sido reeleito em disputa eleitoral contestada pela oposição

Por que os militares tomaram a decisão de pedir a renúncia de Morales?

Lamentavelmente, em muitos países latino-americanos existe uma longa tradição de intervenção militar. O controle civil sobre os militares não é absoluto. Em alguns países, sobretudo na América Central e na região andina, são 200 anos de intervenções militares. Por mais que seja possível comprar a lealdade dos militares, colocar amigos nos  postos máximos, existe certa independência deles que, quando calculam que os civis não poderão lidar com uma crise, decidem intervir. O nível de golpismo caiu, mas não desapareceu. Os militares são menos propensos a governar, não vão tomar o poder como nos anos 1970, mas intervir sim.

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Qual foi o cálculo dos militares bolivianos?

Que poderia desencadear-se muita violência, os dois lados estão muito mobilizados e radicalizados. E isso está acontecendo. Sabiam o que estavam fazendo quando pediram a renúncia, sabiam que estavam empurrando o presidente para tomar essa decisão.

Algumas democracias latino-americanas ainda são tuteladas pelos militares?

Tuteladas é exagero na maioria dos casos. Eram tuteladas antes, até os anos 1990. O fato de que tenham poder de intervir em momentos de crise mostra que os militares mantêm poder e continuam sendo atores importantes na política, lamentavelmente. Isso afeta a democracia. Penso em Venezuela, Bolívia, Nicarágua... Temos democracias deficientes, mas na América Latina não existe alternativa à democracia . Ninguém está na rua pedindo os modelos da China ou da Rússia. Os latino-americanos querem continuar elegendo seus governos. Existem fragilidades, sim, mas não existe alternativa apesar de todas as crises e limitações que vemos.

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Em outras partes do mundo é diferente...

Claro, estou falando da América Latina. Em alguns países a democracia morreu, como na Venezuela e na Nicarágua. Mas quando colapsa não é em mãos de militares e sim de governos eleitos.

Está surpreso com as crises latino-americanas?

Ninguém esperava o que estamos vendo. Os protestos em massa são difíceis de se prever. Todos têm causas diferentes. Existem denominadores comuns, como a impopularidade de mexer nas tarifas de combustível, como fizeram no Equador , ou no valor do transporte público, como no Chile . O desafio comum na região é atravessar este momento ruim da economia. As classes médias cresceram e com a queda do preço dos commodities muitos entraram em graves crises, como na Argentina. As pessoas se sentem frustradas e isso torna mais provável as manifestações. A América Latina está nesse exato momento de queda, depois de um período de forte expansão.