Por Caroline Borges, G1 SC


Terminal do Saco dos Limões, em Florianópolis, é palco de impasse entre prefeitura e — Foto: Diorgenes Pandini/ NSC

Termina nesta quarta-feira (17) o prazo estipulado pela Justiça Federal para que Florianópolis deixe em condições dignas de hospedagem no Terminal Saco dos Limões (Tisac). A estrutura abriga desde janeiro indígenas que vendem e produzem artesanatos durante a temporada de verão. O município afirmou que está cumprindo a decisão.

No verão, indígenas de diferentes locais procuram a Capital catarinense para comercializar os produtos. Esse deslocamento, que acontece ao menos desde a década de 60, é alvo de impasse por conta do local que abriga a população. Neste ano, especialmente por conta da pandemia da Covid-19, a discussão precisou ser mediada por decisões judiciais.

Em reunião na última quinta-feira (11), o Executivo municipal informou que apresentará, em até 30 dias, propostas de novos locais para construção de uma casa de passagem definitiva para o grupo, "uma vez que ficou consignado da impossibilidade de construção da casa de passagem na área do terminal (veja os detalhes abaixo).

Em meio às discussões na Justiça, o G1 SC visitou o local e entrevistou um líder indígena que, desde 7 de janeiro, está abrigado dentro do terminal. Ele contou como é viver com a estrutura improvisada junto a outras 22 pessoas e falou sobre os desafios que a população enfrenta na cidade. Confira:

Sadrak Lopes, de 31 anos, chegou na capital em 7 de janeiro para vender os produtos que confeccionou ao longo do ano — Foto: Diorgenes Pandini/NSC

Jømæ. É com essa palavra que Sadrak Lopes se descreve. De origem Kaingang, a junção das letras significa coragem e traduz o que o indígena de 31 anos precisa ter para enfrentar o acampamento de forma improvisada no terminal. O líder do grupo fala sobre o desejo de paredes para escapar da chuva e do vento. Isso bastaria para acordar tranquilo e vender o artesanato que aprendeu quando criança. “Só isso que a gente quer, os nossos direitos e tem que ter coragem”, conta.

Enquanto mexe nos cestos e ornamentos, Sadrak narra como aprendeu a fazer o que é o principal meio de sustento da família. Além de remontar a cultura Kaingang, identificar as famílias e reaproveitar os materiais da natureza, Sadrak acredita que os artesanatos dão dignidade aos povos que escaparam da morte, mas perderam territórios.

“Muitos dizem ‘porque os índios não vivem no mato, os índios não vivem da caça?’. Só que hoje, a nossa caça agora é o artesanato. A gente vem vender os nossos artesanatos para, no final da venda, a gente ter o que levar para a nossa aldeia, porque não tem mais isso de caça lá”, conta.

Entre as produções estão cestos feitos de cipó do tipo São João vendido na cidade a R$ 20. Há objetos maiores que chegam a valer R$ 200 e levam meses para serem feitos.

'Artesanato tem caráter sagrado', diz antropóloga

De acordo com a antropóloga Viviane Vasconcelos, há registros de movimentos de vinda ao litoral de diferentes povos indígenas para a venda de artesanato pelo menos desde a década de 1960 no estado.

Segundo a doutoranda de antropologia, que estuda os deslocamentos povos dos indígenas na região Sul, além de meio de subsistência, os produtos são sagrados para as populações originárias do país e transcendem o material.

“É difícil generalizar, isso é importante dizer, pois são vários povos, com muitas visões diferentes e essa ideia generalizante fez muito mal aos povos indígenas até como forma de etnocídio, mas o que eu posso te dizer é que, em geral, o artesanato tem um caráter muito sagrado”, conta.

Indígena fala sobre a venda de artesanato em Florianópolis

Indígena fala sobre a venda de artesanato em Florianópolis

Situação no terminal

Desde pequeno, Sadrak vem a Santa Catarina. Fazia de ônibus, com a avó Teresa Lopes, o trajeto de 560 quilômetros entre a Terra Indígena (TI) Benjamin Constant do Sul (RS), onde mora, e Florianópolis. Com 101 anos, ela não vem mais ao Litoral catarinense e cabe ao neto vender os objetos que aprendeu com ela.

Foi com a matriarca da família que o líder indígena aprendeu também a lutar pela construção da casa de passagem em Florianópolis. Discussão existe há pelo menos dez anos. Neste ano, em meio à pandemia, o problema foi agravado.

Acostumado com as negociações dos produtos, esse ano Sadrak vê a máscara como proteção essencial contra a Covid-19. Em Santa Catarina, a doença matou mais de 6,7 mil pessoas até esta quarta-feira (17).

Barracas improvisadas e falta de condições sanitárias

Sem a pandemia, cerca de 170 indígenas dos povos Xokleng e Kaingang vêm a Florianópolis todos os anos. Nessa temporada, porém, apenas uma aldeia decidiu vir à cidade, e em menor número. Divididos em seis famílias e com cerca de 200 artesanatos cada, os indígenas dormem dentro de barracas improvisadas.

As duas salas na entrada do terminal, construídas com a finalidade de abrigar funcionários do transporte coletivo, guardam, agora, os produtos dos artesãos e funcionam como quarto para que as crianças indígenas não fiquem desprotegidas sob o vento.

Segundo a doutoranda em antropologia social e co-vereadora da capital, Joziléia Daniza Jagso, a situação sanitária também é precária. Ela defende que é urgente conceder condições dignas para os indígenas.

“Precisamos que todos conversem, precisamos de diálogo para resolver esse problema”, conta a pesquisadora que também pertence ao povo Kaingang.

A cada nova temporada, segundo Sadrak, a situação de insalubridade se repete. Sem paredes, quando chove no local, as roupas ficam úmidas. O mau tempo é constante na Ilha que, para os índios Carijós que habitaram primeiro, é chamada de Meiembipe. O vento Sul também complica a estada no local.

Artesanato é feito com material da aldeia dos indígenas — Foto: Diorgenes Pandini

Abrigo na pandemia

Em 7 de janeiro, os 23 indígenas Kaingangs do Rio Grande do Sul chegaram a capital catarinense e entraram no terminal em protesto pedindo a construção do abrigo. A prefeitura disse que foi surpreendida e que o espaço estava lacrado por conta da pandemia. Os indígenas contrapõem e afirmam que avisaram sobre a chegada.

Segundo a Assistência Social do município, anualmente são feitas adequações estruturais provisórias no local por conta de um acordo firmado em 2018 com o Ministério Público Federal (MPF). Durante a pandemia, porém, uma determinação de dezembro da Justiça suspendeu a reforma no local por conta do risco à saúde daquela população.

Em um último movimento na discussão dentro da Justiça, na quinta-feira (11), o juiz Marcelo Krás Borges, da 6ª Vara Federal de Florianópolis, deu prazo para que município finalize todas as melhorias no local, "incluindo a colocação de chuveiros, pias, torneiras, portas, caixa d'água, coletores para a colocação de lixo e todos os demais equipamentos necessários para o alojamento"

Após a decisão, a prefeitura informou que foi acordado com o MPF que, em 30 dias, o município vai apresentar propostas de novos locais para construção de uma casa de passagem definitiva, "uma vez que ficou consignado da impossibilidade de construção da casa de passagem na área do terminal.

Em nota, o Executivo informou que ficou sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai) fazer um levantamento das necessidades dos indígenas que estão abrigados no terminal.

Para Sadrak, o acordo deve ser cumprido. “Nós viemos aqui porque tem um documento com assinatura para a casa [de passagem]. Eles assinaram, têm que cumprir com o nome deles que está lá no papel”, afirmou o indígena.

Discussão por construção da casa de passagem dura anos em Florianópolis — Foto: Diorgenes Pandini/NSC

Discussão para a casa de passagem dura 4 anos

As melhorias anuais, segundo o MPF, são apenas paliativas enquanto a casa de passagem indígena não é construída no terminal que nunca abrigou ônibus ou passageiros, apenas a população indígena. Conforme a procuradora do MPF, Analúcia Hartmann, a União cedeu o terreno ao município com a garantia da construção.

O acordo foi firmado em 2018 e o projeto do espaço chegou a ser aprovado em 2019, mas não saiu do papel. A prefeitura afirma que o Conselho da Cidade não autorizou a construção no local por ser uma Área Verde de Lazer (AVL). Agora, a estrutura deve ser construída em outro local.

Em nota enviada ao G1 SC, a Secretaria de Assistência Social municipal disse que reconhece e se “solidariza a estes povos que fazem parte da história de nosso país”, mas a pauta requer o envolvimento dos estados vizinhos e dos governos estadual e federal. A (Funai) também precisa participar da discussão, defendeu o município.

Indígenas chegaram a Florianópolis para vender artesanato produzido na aldeia no sul do país — Foto: Diorgenes Pandini/NSC

Procurada, a Funai afirmou que tem participado ativamente das discussões sobre a disponibilização de local adequado para alojar os indígenas. Nesse período, foi intensificado o contato com as prefeituras e lideranças indígenas, a fim de que a questão seja solucionada o quanto antes”.

Segundo o órgão, foi formado um grupo para orientar os artesãos indígenas sobre os riscos relacionados à Covid-19. Além disso, a Funai forneceu aproximadamente 68 mil cestas básicas e 4 mil kits de higiene e limpeza às famílias indígenas da Região Sul do país durante a pandemia.

O G1 SC procurou o governo estadual. Em resposta, a Secretaria de Desenvolvimento Social afirmou que está ciente da situação existente em Florianópolis e tem trabalhado para ofertar alternativas de geração de renda para os indígenas diferentes da venda direta de artesanato.

Segundo a pasta, projetos de fortalecimento da cultura indígena no estado poderiam ser propostos através Grupo de Trabalho permanente da questão indígena, que teve a primeira reunião em dezembro de 2020.

na terça-feira (11), Justiça determinou que Prefeitura dê hospedagem digna aos indígenas — Foto: Diorgenes Pandini/NSC

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