Passado o aperto da fase mais aguda da pandemia, a CVC, principal operadora de turismo do Brasil, comemora a chegada da vacina e espera o começo da retomada de uma normalidade dos seus negócios para dezembro. Enquanto isso, dá início a uma estratégia de transformação digital.
“Ainda temos dúvida se a vacinação vai estar bem-sucedida em julho ou setembro, mas com certeza será este ano. Isso mudará todo o cenário econômico e o nosso setor tem tudo para dar um salto, pois há demanda reprimida gigantesca”, diz Leonel Andrade, principal executivo da CVC.
Ele conta que, no final de novembro e dezembro ,a CVC chegou a ter um pico de movimento, atingindo pouco mais de 50% do obtido no mesmo período de 2019. Com o crescimento de casos no início do ano, em janeiro esse percentual recuou para em torno de 40%. “Mas, do ponto de vista da perspectiva, hoje estamos bem à frente de dezembro, porque começou a vacinação”, afirma.
A expectativa da empresa é para um dezembro “muito forte”, embora concentrado no segmento doméstico — em 2019, ele representou 65% das receitas considerando lazer, corporativo e intercâmbio. O turismo internacional, diz Andrade, teve um pico de 9% em dezembro em relação ao mesmo mês de 2019, mas agora já retraiu pelo fechamento das fronteiras ao Brasil e a insegurança de viajar e ter problemas para voltar. “Só retornará com vacinação massiva global.” As viagens corporativas também ficam para depois. “Devemos ter uma pequena diminuição em viagens individuais. Mas o relevante aqui são os eventos, congressos e feiras, que vão ser retomados, mas com demora maior, porque dependem de planejamento”, diz.
Andrade acaba de completar 10 meses no cargo e conta que só há dois meses tem boas noites de sono. “Cheguei em abril e a primeira vez que dormi bem foi no fim de novembro, quando concluímos a reestruturação da dívida, depois de termos reapresentado os balanços e fechado a capitalização. Só então tive a sensação de que a CVC tinha eliminado todos os grandes riscos e sobreviveria à crise”, diz Andrade. “A empresa esteve perto de quebrar ou passar por um problema de proporção maior.”
A CVC está num dos setores mais duramente atingidos pela pandemia. Mas seus problemas já haviam começado antes, com a quebra da parceira Avianca e principamente a descoberta de problemas nos balanços, que minaram a credibilidade da antiga gestão.
A ação da empresa saiu de um patamar de R$ 60 e chegou a R$ 6 no início da pandemia, quando sua receita foi a zero. Numa situação como essa, o nível de endividamento , próximo a R$ 2 bilhoes, que antes era inferior a 3 vezes o Ebitda, deixou de ser aceitável.
O êxito da CVC em superar as suas crises é atribuído por Andrade a novos acionistas, que dobraram a aposta na empresa, aceitando o risco do momento de maior insegurança. São 8 fundos brasileiros, que concentram cerca de 40% da empresa — entre eles, Pátria, Opportunity e Equitas. A CVC não tem um acionista controlador.
“Eles perceberam que se superasse aquela fase, a CVC sairia, como está saindo, fortalecida para dominar o mercado, com uma nova estratégia digital”, diz Andrade. O compromisso desses acionistas foi em capitalizar a empresa, o que Andrade diz ter sido fundamental para a renegociação com credores.
“Estamos falando de R$ 1,1 bilhão em dinheiro novo na companhia para ela sobreviver. Por aí você tem a dimensão do problema. Mesmo sem a pandemia, por conta dos problemas no balanço, que apresentavam resultados acima da realidade, a empresa precisaria, com urgência, de uma injeção de capital. Mas a pandemia elevou o patamar dessa necessidade”, diz.
Desse valor bilionário, R$ 300 milhões já foram para o caixa ano passado. Os R$ 800 milhões restantes, conforme acordado com credores debenturistas, precisam ingressar este ano. Parte virá de uma segunda etapa da capitalização chamada em 2020 e concluída semana passada, cujo resultado ainda não foi divulgado. E o restante será levantado em uma nova operação, de dívida ou de venda de ações, que sairá até o fim do ano.
Os balanços estão 100% em dia. O que falta acontecer é o conselho de administração revelar o resultado da investigação sobre indícios de fraude nas demonstrações. Se confirmadas, devem recomendar aos acionistas a abertura de ação contra a gestão anterior. Isso deverá acontecer até abril.
Andrade estruturou áreas de governança, compliance e auditoria. “Para mim foi impressionante assumir uma empresa desse tamanho que não tinha uma área de compliance. Aqui vai minha crítica não apenas à gestão anterior, mas ao regulador. A CVC está no Novo Mercado e nunca teve uma área de compliance”, diz Andrade.
Passado o aperto, a CVC caminha para confirmar a tese de que as grandes empresas, pelo acesso a capital, sairão fortalecidas nessa crise. “A nossa vantagem competitiva é estarmos inteiros. Temos caixa para honrar compromissos com clientes que compraram os pacotes e ainda não viajaram. A dívida está equacionada e não desmontamos nenhuma operação. Estamos com todas as parcerias com os fornecedores, como hotéis e aéreas”, diz. Ele explica que essas são as âncoras que precisam estar sólidas para reavivar o setor. “Os pequenos parceiros, que tinham lojas, transportes, restaurantes, estão hoje em dificuldades. Mas serão os primeiros negócios retomados quando a demanda voltar, pela baixa necessidade de capital.”
Andrade conquistou o respeito do mercado quando foi o principal executivo da empresas de fidelidade Smiles, que foi a líder do setor durante sua passagem.
Quando esteve por lá, ele chegou, inclusive a avaliar a compra da CVC, seis anos atrás. O bastidor que se conta no mercado dessa história é que uma consultoria, à época, identificou como único concorrente capaz de oferecer perigo à Smiles seria a CVC, se ela decidisse criar uma empresa de milhagens. Questionado sobre isso, Andrade preferiu não comentar. Mas pouco tempo depois de olhar a CVC, a Smiles fez uma parceria com uma plataforma de reserva de hotéis e, em entrevistas è época, Andrade declarou que queria transformar Smiles numa empresa de turismo.
Agora que está à frente de uma, ele tem o plano de modernizar a empresa e levá-la ao mundo digital. Ele começa com a criação de um programa de milhagens — o primeiro passo para isso foi dado ontem, com o lançamento de um cartão de crédito próprio em parceria com Itaú e Visa. “A CVC tem milhões de clientes e, hoje, não temos nada que estimule a ‘recorrência’ deles”, diz. Esse é o começo de uma transformação da empresa em um “gigantesco marketplace de turismo”, aos moldes do que a Magalu fez em seu negócio.
Nesse processo, vai transformar também as mais de 1,2 mil lojas físicas em pontos ominicanal. E lançará um aplicativo para que o viajante acesse dicas e feche passeios pelo celular. “Hoje não estamos nesse mercado de conteúdo, que é enorme porque o mundo virou digital. A CVC passou muito tempo fazendo mais do mesmo. Vamos fazer uma transformação não para bater as lojas físicas, mas para transformá-las em pontos de venda móveis. Ninguém tem esa rede física que possuímos, é diferencial”, diz.