Rio

Para afastar morador de rua, prédios no Rio retiram marquise e usam até arame farpado

Em alguns casos são usadas até grades para proteger patrimônio

A prefeitura construiu sob o Viaduto Trinta e Um de Março, ao lado do Sambódromo, uma parede inclinada para evitar que pessoas vivam ali: estratégia não foi bem-sucedida
Foto: ANTONIO SCORZA
A prefeitura construiu sob o Viaduto Trinta e Um de Março, ao lado do Sambódromo, uma parede inclinada para evitar que pessoas vivam ali: estratégia não foi bem-sucedida Foto: ANTONIO SCORZA

RIO - Um dos mais evidentes problemas sociais do Rio está nas calçadas, coberto por trapos e pedaços de papelão, à vista de qualquer um. Mas nem todos querem ver, muito menos de perto. Até mesmo as autoridades têm fechado os olhos. Assim como o Edifício Roxy, em Copacabana, que instalou uma espécie de chuveirinho na marquise, outros prédios têm adotado estratégias para afastar moradores de ruas. Arame farpado, tapumes, grades, creolina, ameaças e agressões são alguns dos “métodos” usados por comerciantes e condôminos para evitar que adultos, jovens e crianças durmam em suas portas. Enquanto a população de rua cresce — são 14.279 em toda cidade —, a prefeitura ainda estuda o que fazer para superar esse desafio.

Nesta segunda, após fazer uma vistoria no prédio onde fica o cinema Roxy, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade informou que vai determinar a retirada do chuveirinho. O motivo não é o fato de o equipamento molhar as pessoas que costumam dormir ali, mas por a construção ser tombada desde 2003 e, por isso, necessitar de autorização para fazer qualquer modificação. A Secretaria municipal de Urbanismo deverá aplicar uma multa.

O dispositivo que joga água na calçada foi instalado na última sexta-feira. O síndico diz que seria para molhar um jardim, que ainda será feito. Ele não quis informar se vai retirar a tubulação:

— Enquanto o jardim não chega, a gente vai usar para lavar a calçada, até porque os moradores de rua quando saem daqui deixam lixo, fezes e urina. O mau cheiro incomoda. Não instalamos isso para atingir as pessoas, até porque a água quando cai escorre pelo canto e corre pela calçada.

Reações conflitantes

O uso do chuveirinho provocou reações diferentes. Moradores da região dizem que foi a melhor solução encontrada pelo síndico e pelos condôminos do edifício. Além de ocupar as calçadas, as pessoas que vivem sob a marquise usam drogas, fazem sexo explícito, ameaçam as pessoas com pedras e deixam fezes e urina.

— São homens, mulheres e crianças que fazem de tudo. Imagina os idosos que aqui vivem se deparando com um homem se masturbando ou um casal fazendo sexo aqui na calçada? É o que acontece corriqueiramente de dia ou à noite. É claro que isso incomoda. Esse chuveirinho tirou eles daqui com bom senso e respeito — defendeu a professora aposentada Gloria Habib, de 61 anos.

O taxista Martinho Lutero, de 66 anos, que trabalha no ponto em frente ao Roxy há duas décadas, disse que a presença de moradores de ruas aumentou muito no último ano. O motorista aplaudiu a ideia do chuveirinho e confessou que ele mesmo tomaria alguma atitude se a situação não mudasse.

— Os taxistas começaram a ter problemas, porque passageiros preferiam tomar o táxi na rua a caminhar até o ponto. Tudo para não ter que passar perto daquele grupo. Eu mesmo já pensei em jogar algo ali para evitar aquela aglomeração. Agora, acho que vai melhorar 100%. Todos querem ter o direito de ir e vir.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Marcelo Chalréo condenou a forma adotada pelo condomínio, que classificou como absurda e discriminatória.

— É uma atitude higienista. Além de ser absurda e discriminatória, não é a solução para o problema social gravíssimo que atinge o Rio. Muito melhor seria testar um tipo de assistência social. Seria mais humano e decente. É preciso buscar alternativa, e fazer pressão sobre o poder público — defendeu.

A antropóloga Yvonne Maggie, da UFRJ, considerou a solução em Copacabana muito violenta:

— É muito sério porque você não tem os poderes públicos atuando no sentindo de amenizar a vida da população de rua e, então, os particulares acabam fazendo coisas desumanas, com total falta de espírito humanitário. Mas concordo que a experiência de ter esse tipo de população na sua porta é muito traumática.

Moradores da Rua Bolívar, onde fica o Edifício Roxy, não são os únicos a se incomodarem com a presença dos moradores de rua. Na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, o Edifício Surubim, um dos percussores do chuveirinho, optou por também usar uma velha barreira já conhecida dos cariocas: as grades. Um porteiro do prédio, que preferiu não se identificar, disse que a estrutura foi instalada há dois meses e já tem resolvido os transtornos em frente ao prédio.

— Antes, havia muita confusão. Usavam a marquise para se proteger, mas também assaltavam quem passava por aqui — contou o funcionário.

Até o ano passado, Copacabana ficava atrás apenas do Centro em número de moradores de rua. Eram 928 pessoas em situação de vulnerabilidade, segundo levantamento feito pelas pelas equipes de abordagem da Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos. O número representa 6,5% do total contabilizado em 2016.


A opção do Edifício José Anchieta, em Botafogo, para afastar os moradores de rua foi mais radical: a demolição da marquise. Condôminos tomaram a decisão em assembleia
Foto: ANTONIO SCORZA
A opção do Edifício José Anchieta, em Botafogo, para afastar os moradores de rua foi mais radical: a demolição da marquise. Condôminos tomaram a decisão em assembleia Foto: ANTONIO SCORZA

Em Botafogo, na Rua Eduardo Guinle, os moradores do Edifício José Anchieta, que conta com 65 apartamentos distribuídos em 18 andares, optou por retirar toda a marquise. Morador do prédio há 34 anos, o aposentado Paulo França, de 78 anos, contou que os condôminos aprovaram a medida em assembleia geral há dez anos e, desde então, não tiveram mais problemas.

— Aproveitamos que a marquise teria que passar por reforma e decidimos derrubá-la. Pensamos em grade, mas a extensão dela seria muito grande. Pensou-se também jogar água, mas haveria problemas. Hoje, sem marquise, melhorou muito. Não aparecem mais. Antes, eles ficavam de ponta a ponta. Faziam todas as necessidades lá; o pessoal da faxina tinha muitos problemas — contou.

Sem ter onde se proteger, a população de rua passou a se abrigar em prédios perto dali, na Rua Guilhermina Guinle. Há três meses, o Edifício Braspar optou por colocar grades metálicas protegendo toda a marquise.

— Atrapalhavam muito nossa portaria. Ficavam a madrugada toda e, quando dava 8h, para acordá-los, era terrível. Havia muitos menores cheirando cola, éter, usando maconha. Faziam até sexo. Há cinco meses, se desentenderam com um porteiro, e o caso foi parar na delegacia — disse um funcionário, que preferiu não se identificar.

Arame farpado protege jardim


A varanda onde funcionava um restaurante na Rua Dias Ferreira, no Leblon, foi fechada por tapumes, porque o lugar estava sendo ocupado por mendigos
Foto: ANTONIO SCORZA
A varanda onde funcionava um restaurante na Rua Dias Ferreira, no Leblon, foi fechada por tapumes, porque o lugar estava sendo ocupado por mendigos Foto: ANTONIO SCORZA

Na mesma rua, um pouco mais à frente, o Condomínio Conde de Paris, no número 170 da Guilhermina Guinle, colocou arame farpado para evitar que um morador de rua dormisse sobre as plantas do jardim. Já no Leblon, as varandas onde funcionavam os restaurantes Azeitona e Gonzalo receberam tapumes após serem notificados pela prefeitura, porque moradores de rua usavam os espaços como abrigos.

— Já estava se formando uma pequena cracolândia, e tomaram providências. Dormiam, pediam esmolas. Colocaram tapumes, e isso acabou — disse o porteiro Maurício Mendes, enquanto varria a calçada ao lado do Azeitona.

Coordenador do Projeto RUAS, que trabalha para promover o bem-estar e a cidadania da população em situação de rua, o advogado Leonardo Sá disse que chuveirinhos são novidade para a organização, mas que ataques de justiceiros ou seguranças são recorrentes.

— O que a gente vê mais são agressões, o botar para correr. Seguranças são contratados por estabelecimentos e prédios. Até hoje, não vi nenhum condomínio ajudar de verdade. Tem um restaurante que, por exemplo, empregou um rapaz que era da rua, mas são situações muito pontuais.

Em abril de 2016, uma reportagem do GLOBO mostrou que policiais se oferecem para remover moradores de rua. De acordo com as propostas, pagando quase R$ 900 mensais, qualquer condomínio fica livre de pedintes ou mendigos em sua calçada e pode contar com vigilância 24 horas por dia.

Procurada, a secretária municipal de Assistência Social, Teresa Bergher, disse vai acionar o Ministério Público no caso do chuveirinho. Segundo ela, abordagens sociais são feitas constantemente para que pessoas nas ruas sejam levadas para abrigos, mas admitiu ser um trabalho difícil:

— Eles não querem ir para os abrigos, e a lei não permite levá-los compulsoriamente. O que acontece é que eles acabam se acostumando, principalmente, quando as pessoas dão dinheiro ou comida. Isso não resolve nada.

A secretária disse ainda que estão em estudo “ações multissetoriais”:

— Precisamos de mais abrigos sim, mas só isso não resolve. Por isso, estudamos ações conjuntas com as secretarias de Saúde e Urbanismo.