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'Pedalada climática': Às vésperas de conferência do clima, Brasil mantém manobra contábil de CO2

País se colocou em controvérsia com uma estratégia que consiste em manter o percentual de corte prometido das emissões de dióxido de carbono, mas alterando a base de cálculo da promessa
Incêndio florestal em Roraima: cálculo abre brecha para o Brasil manter desmatamento anual alto Foto: Adriano Machado / Reuters
Incêndio florestal em Roraima: cálculo abre brecha para o Brasil manter desmatamento anual alto Foto: Adriano Machado / Reuters

SÃO PAULO — Daqui a um mês, a delegação do Brasil desembarca na COP-26, a conferência do clima de Glasgow, na Escócia, sob pressão doméstica e externa para não recuar em compromissos assumidos. No centro das controvérsias em que o país se colocou está a tentativa de aplicar uma manobra contábil que lhe permitiria relaxar sua meta de corte nas emissões de dióxido de carbono (CO2).

Apelidada pelos ambientalistas de “pedalada climática”, a estratégia consiste em manter o percentual de corte prometido, mas alterar a base de cálculo da promessa. O país deve cortar 43% da emissão anual de gases de efeito estufa até 2030, tendo como base aquilo que o país emitia em 2005. Como o Brasil revisou retroativamente seus números de emissão, porém, argumenta que isso lhe permite aumentar a promessa feita no âmbito do Acordo de Paris.

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Essa manobra já estava embutida na proposta que o governo fez no ano passado de sua NDC (contribuição nacionalmente determinada), o documento que os países precisam produzir com suas promessas para a convenção do clima. O impacto da manobra, porém, passou a ser denunciado principalmente depois de abril deste ano, quando o cientista Raoni Rajão, da UFMG, publicou estudo mostrando o tamanho do acréscimo de emissões resultante.

Em 2005, pelos cálculos do Segundo Inventário Nacional de Emissões de Gases do Efeito Estufa, o país produzia cerca de 2,1 bilhões de toneladas de CO2 por ano. Esse volume, porém, foi revisado para 2,8 bilhões. O governo argumenta que, mantendo sua promessa percentual, isso abre margem para que 400 milhões de toneladas a mais de gases estufa por ano sejam emitidas em 2030.

Na prática, esse cálculo cria uma brecha para o Brasil continuar com a taxa de desmatamento anual no patamar dos 10 mil km², considerada preocupante. O governo, porém, diz que sua nova NDC é mais ambiciosa, pois o objetivo de 2030 evoluiu de um status de “indicação” para “compromisso”.

Marcha a ré

O GLOBO conversou com três analistas de política do clima que acompanham os bastidores das negociações na COP-26, e todas veem diplomatas brasileiros em posição desconfortável agora para conseguir algum avanço na conferência.

— Com essa NDC, o país está violando o Acordo de Paris, segundo o qual só se pode submeter compromissos mais ambiciosos que os anteriores, não menos. A ideia é impedir os governos de andar para trás — explica Stela Herschmann, especialista em políticas climáticas do Observatório do Clima, coletivo que reúne as maiores ONGs ambientais do país. — O Brasil chega à COP-26 como o país que mais recuou na sua NDC. O México fez uma coisa parecida, mas a revisão dos números não impactou tanto — diz ela.

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O governo do Brasil, em tese, tem ainda alguns dias para mudar de ideia, pois a Convenção do Clima da ONU estendeu o prazo para que países submetam novas NDCs. A organização adiou a edição de seu relatório sobre compromissos globais porque se deu conta que houve pouco avanço antes da COP-26.

O Acordo de Paris, de 2015, prevê que os cortes de emissão de CO2 impeçam o planeta de aquecer mais de 2,0°C até o fim do século, em relação aos níveis pré-Revolução Industrial. Os cortes globais de emissão somados, porém, colocam o planeta rumo aos 2,7°C.

Os países que não estão fazendo bem a lição de casa, por isso, foram todos procurados neste ano pelo Reino Unido, anfitrião da COP-26, que tenta estimular avanços nos compromissos. Os diplomatas do Brasil, como esperado, estão nesse grupo. O Itamaraty não se pronunciou ainda sobre o assunto.

— Eles estão sendo pressionados por todos os lados: por governos, por sociedade civil e tudo o mais. O Brasil fez um cálculo com uma base equivocada — afirma Rachel Biderman, porta-voz e cofacilitadora da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. A organização, que tenta articular consenso entre agronegócio e sociedade civil para avanço nas políticas ambientais , não vê chance de o governo brasileiro se alavancar nas negociações em Glasgow.

O governo brasileiro tem a ambição de negociar regras que o favoreçam nos mecanismos de compensação financeira para combate ao desmatamento, mas, sem mostrar comprometimento, é difícil ganhar terreno.

— O mundo não está “comprador” do Brasil. Existe uma clareza de que teve aumento de emissões por desmatamento, que tem menos monitoramento e que há urgente necessidade de ampliar medidas de controle ambiental na fronteira agropecuária da Amazônia, e do Cerrado — diz Biderman.

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Para Caroline Rocha, gerente do programa de clima na seção brasileira do WRI (World Resources Institute), a pressão por avanços não é só sobre o Brasil, e o país não deve ser privilegiado nas negociações.

— O esperado do Reino Unido, como anfitrião da COP, é que eles pressionem os países-membros para aumentar as suas ambições, e a a nova NDC do Brasil é uma das que estão aquém das expectativas— diz. — Mas é importante entender que, como a NDC é “nacionalmente determinada”, não existe um mecanismo para impor metas de cima para baixo — explica Rocha.

Ou seja: sem vontade política do governo, nenhuma proposta avança.

Remoção na conta

Além de recalcular sua meta, um expediente que atrapalha a argumentação do Brasil é sua prática de descontar grandes volumes de “remoção” de CO2, por considerar que suas terras indígenas e unidades de conservação são parte do esforço de corte de emissões. Essa prática de reportar emissões “líquidas” menores do que suas emissões “brutas” (veja quadro à esquerda) mascara o fato de que essas áreas protegidas vêm sendo questionadas em projetos de lei e muitas delas já sofrem degradação.

— Isso vulnerabiliza o país na negociação climática — diz Biderman. — A gente deveria estar investindo muito mais em coisas como controle de combate ao fogo e na construção de aceiros (áreas de contenção de incêndios), mas estamos assistindo ao contrário.

O aumento do fogo nas florestas desde 2019 também coloca o Brasil em situação difícil, porque os incêndios não são computados além do desmate por “corte raso”, subestimando as emissões nacionais.

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Uma esperança de avanço na promessa do Brasil surgiu do discurso do presidente Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, no mês passado, no qual vocalizou a promessa de zerar o desmatamento até 2030.

— Só que isso não está escrito na nossa NDC, então não é um compromisso oficial — diz Herschmann.

— Se o presidente já falou isso em discurso, por que não fazer essa atualização agora? — questiona.