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SAÚDE PÚBLICA

A epidemia de meningite que a ditadura militar no Brasil tentou esconder da população

Paulistanos no Instituto Butantã, após tomar vacina, em setembro de 1974, meses depois de o regime admitir epidemia

Uma doença misteriosa estava matando bebês com menos de 1 ano no município de Cantagalo, no interior do Estado do Rio, em meados de 1971. De acordo com a edição do GLOBO de 2 de agosto daquele ano, em seis semanas o mal havia causado o óbito de ao menos dez crianças, instalando o luto e o medo na pequena cidade, então com cinco mil habitantes. O médico encarregado pelo hospital local não sabia diagnosticar a enfermidade, embora estivesse tratando os pacientes com medicamentos usados contra a meningite. Aquele era, de fato, o estágio inicial da maior epidemia de meningite da história do país. O problema se agravaria muito, impulsionado pela falta de conhecimento da população, já que a ditadura militar censurava as informações sobre a crise sanitária.

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A epidemia começou em Santo Amaro, na Grande São Paulo, e teve um início insidioso até explodir, causando 2500 mortes na capital paulistana, em 1974. Mesmo com a incidência de casos saltando a cada ano, e com mortalidade oscilando de 12% a 14% dos doentes, o regime militar escondia os números da população e negava a existência de epidemia. Para calar jornais, rádios e TVs, o governo se valia do Decreto-Lei 1077, de 26 de janeiro de 1970, que estabeleceu a censura prévia aos veículos de comunicação. Médicos e sanitaristas não podiam dar entrevistas. Só a partir  de 1974, quando a doença já grassava em áreas centrais de São Paulo, e não havia mais como negar a situação, com hospitais em colapso, os generais começaram a reconhecer o problema.

Página do GLOBO de 2 de agosto de 1971

De acordo com pesquisadores, o Brasil vivia a ilusão do “milagre económico”, com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), e os militares temiam prejuízo à imagem do país no mercado global no caso de reconhecer a epidemia de uma doença para a qual já existia vacina. Médicos e sanitaristas foram proibidos de falar sobre o assunto, que foi considerado questão de segurança nacional.

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A professora Ritas Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, trabalhou na linha de frente do combate à epidemia de meningite e, mais tarde, escreveu o livro “Meningite: Uma doença sob censura? (1988). Segundo ela, apenas jornais e revistas impressas podiam noticiar, mas sem citar números e sem ligar o problema a causas sócio-econômicas. Enquanto a meningite matava moradores da periferia, os militares conseguiram abafar o assunto, mas quando a epidemia atingiu bairros nobres de São Paulo, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma crise de saúde. Então, o estrago já estava feito. O Hospital Emílio Ribas, na capital paulistana, tinha cerca de 400 leitos, mas chegou a ter mais de mil pacientes internados.

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- Sem conhecimento do surto, a população não sabia o que fazer. As famílias demoravam para levar as crianças ao hospital. Além disso, como nem os médicos estavam informados, muitos não consideravam a meningite num primeiro exame do paciente. A falta de comunicação retarda o tratamento, o que no caso da meningite pode ser mortal. A doença evolui muito rapidamente, não há casos leves. Vimos crianças saudáveis morrendo duas horas após o primeiro sintoma - explica Rita Barradas, que, naquela época, iniciava sua carreira no Emilio Ribas. - A gente trabalhava num ritmo parecido com o que está ocorrendo com a Covid-19. Eram 14 horas diárias de trabalho intenso, num hospital funcionando com mais que o dobro de sua capacidade.

Multidão aguarda vacinação no Instituto Butantã, em São Paulo, em setembro de 1974

Para a pesquisadora, a medida recém-adotada pelo governo Bolsonaro, que alterou a forma de divulgar os dados da pandemia de coronavírus, consiste em conduta parecida com aquela imposta pela ditadura ao lidar com a meningite, mas a médica afirma que a situação, agora, é bem diversa.

- Acho que faz parte da estratégia de, a cada semana, fornecer à imprensa uma nova insanidade para desviar nossa atenção do que importa. Cada estado poderá seguir informando, e, assim, a medida federal só torna mais difícil o trabalho - critica Barradas. - Infelizmente, a epidemia não vai sumir se pararmos de falar dela e nem se o Ministério da Saúde parar de divulgar os dados.

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Segundo a professora, comunicar a população de forma transparente é fundamental quando há disseminação de alguma doença.

- A população precisa estar informada sobre uma epidemia. Comunicação bem feita não gera pânico. O que gera pânico é o que estamos vivendo agora, com o coronavírus, sem uma comunicação oficial eficiente. As pessoas não sabem em que acreditar. O governo federal, ausente, não faz articulação entre estados e municípios. Estamos na maior crise sanitária da História com um ministro sem nenhuma experiência na área - analisa Rita Barradas, que repudia a tentativa do Planalto de forçar o uso da cloroquina para tratar a Covid-19. - Nem na ditadura o governo questionava orientações de médicos e sanitaristas, como agora. Nem no regime militar houve determinação de como tratar doença.

Página do GLOBO de 25 de julho de 1974

A epidemia nos anos 70 começou com predominância da bactéria meningococo do sorogrupo C. A incidência em São Paulo subiu e 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Em 1972, chegou a 15,64 diagnósticos por 100 mil habitantes, e em 1973, quando atingiu os 29,38 casos por 100 mil habitantes. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Em 1974, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes. Os números são do estudo “A doença meningocócica em São Paulo, Brasil, no século XX”, de José Cássio de Moraes e Rita Barradas. Também houve surtos no Rio e em outros estados, mas a maior concentração de casos se deu na capital paulistana.

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Com a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o presidente "linha dura" Emílio Garrastazu Médici deu lugar ao mais moderado Ernesto Geisel. Ainda houve muita resistência do governo, mas, sob pressão da mídia e da própria epidemia, algumas autoridades começaram a reconhecer o problema publicamente. Foi criada a Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da vacina. Aulas foram suspensas, e escolas de São Paulo abrigaram hospitais de campanha. Três anos após o início da crise, as medidas adequadas começaram a ser tomadas.

Página do GLOBO de 28 de julho de 1974

Jornalistas de diferentes veículos de imprensa, que trabalharam naquela época, são testemunhas das dificuldades de publicar informações. Ao fazer uma busca pelos arquivos do GLOBO, encontra-se poucas matérias tratando do assunto até 1974, quando as reportagens se tornam muito mais frequentes. No dia 23 de setembro de 1973, O GLOBO publicou uma matéria com o título "Meningite pode ser a causa da morte de duas crianças em Recife". Segundo a reportagem, autoridades locais negavam a existência de uma epidemia, mas uma funcionária do Instituto de Medicina Infantil de Pernambuco disse que os médicos estavam nervosos com a situação. Ainda de acordo com o texto, "os médicos do instituto estão proibidos de falar com a imprensa".

Catarina Schneider é mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutora em Comunicação e Saúde pela Fiocruz. Ela é autora de uma dissertação sobre a epidemia de meningite dos anos 70 que analisa a cobertura do assunto nos jornais O GLOBO e "Folha de São Paulo". Segundo a jornalista, de 1971 a 1973, as matérias que abordavam a situação eram construídas com títulos que mostravam incertezas sobre a doença e os diagnósticos. Em 1974, houve uma flexibilização da censura, mas logo depois o cerco apertou de novo. Só em 1975, quando o número de vacinas disponíveis daria conta de toda a população, a imprensa foi liberada pelos militares para abordar o tema com mais propriedade.

Para a pesquisadora, existe paralelo entre a censura dos anos 70 e a medida do governo atual de restringir a divulgação do número de mortos pela Covid-19.

- Vivemos uma pandemia no mundo e podemos fazer um paralelo com a censura dos anos do regime militar. O governo tenta esconder, disfarçar e até silenciar a real situação do país com a Covid-19,  manipulando  números de casos e de mortes pela doença. Quando não podemos confiar nas informações que estão sendo divulgadas, ficamos perdidos diante de todo esse caos que estamos vivendo. A censura é o limite do dizer e pode trazer muitas consequências - critica a jornalista, que tem mestrado e Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutorado em Comunicação e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

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