Uma doença misteriosa estava matando bebês com menos de 1 ano no município de Cantagalo, no interior do Estado do Rio, em meados de 1971. De acordo com a edição do GLOBO de 2 de agosto daquele ano, em seis semanas o mal havia causado o óbito de ao menos dez crianças, instalando o luto e o medo na pequena cidade, então com cinco mil habitantes. O médico encarregado pelo hospital local não sabia diagnosticar a enfermidade, embora estivesse tratando os pacientes com medicamentos usados contra a meningite. Aquele era, de fato, o estágio inicial da maior epidemia de meningite da história do país. O problema se agravaria muito, impulsionado pela falta de conhecimento da população, já que a ditadura militar censurava as informações sobre a crise sanitária.
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A epidemia começou em Santo Amaro, na Grande São Paulo, e teve um início insidioso até explodir, causando 2500 mortes na capital paulistana, em 1974. Mesmo com a incidência de casos saltando a cada ano, e com mortalidade oscilando de 12% a 14% dos doentes, o regime militar escondia os números da população e negava a existência de epidemia. Para calar jornais, rádios e TVs, o governo se valia do Decreto-Lei 1077, de 26 de janeiro de 1970, que estabeleceu a censura prévia aos veículos de comunicação. Médicos e sanitaristas não podiam dar entrevistas. Só a partir de 1974, quando a doença já grassava em áreas centrais de São Paulo, e não havia mais como negar a situação, com hospitais em colapso, os generais começaram a reconhecer o problema.
De acordo com pesquisadores, o Brasil vivia a ilusão do “milagre económico”, com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), e os militares temiam prejuízo à imagem do país no mercado global no caso de reconhecer a epidemia de uma doença para a qual já existia vacina. Médicos e sanitaristas foram proibidos de falar sobre o assunto, que foi considerado questão de segurança nacional.
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A professora Ritas Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, trabalhou na linha de frente do combate à epidemia de meningite e, mais tarde, escreveu o livro “Meningite: Uma doença sob censura? (1988). Segundo ela, apenas jornais e revistas impressas podiam noticiar, mas sem citar números e sem ligar o problema a causas sócio-econômicas. Enquanto a meningite matava moradores da periferia, os militares conseguiram abafar o assunto, mas quando a epidemia atingiu bairros nobres de São Paulo, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma crise de saúde. Então, o estrago já estava feito. O Hospital Emílio Ribas, na capital paulistana, tinha cerca de 400 leitos, mas chegou a ter mais de mil pacientes internados.
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- Sem conhecimento do surto, a população não sabia o que fazer. As famílias demoravam para levar as crianças ao hospital. Além disso, como nem os médicos estavam informados, muitos não consideravam a meningite num primeiro exame do paciente. A falta de comunicação retarda o tratamento, o que no caso da meningite pode ser mortal. A doença evolui muito rapidamente, não há casos leves. Vimos crianças saudáveis morrendo duas horas após o primeiro sintoma - explica Rita Barradas, que, naquela época, iniciava sua carreira no Emilio Ribas. - A gente trabalhava num ritmo parecido com o que está ocorrendo com a Covid-19. Eram 14 horas diárias de trabalho intenso, num hospital funcionando com mais que o dobro de sua capacidade.
Para a pesquisadora, a medida recém-adotada pelo governo Bolsonaro, que alterou a forma de divulgar os dados da pandemia de coronavírus, consiste em conduta parecida com aquela imposta pela ditadura ao lidar com a meningite, mas a médica afirma que a situação, agora, é bem diversa.
- Acho que faz parte da estratégia de, a cada semana, fornecer à imprensa uma nova insanidade para desviar nossa atenção do que importa. Cada estado poderá seguir informando, e, assim, a medida federal só torna mais difícil o trabalho - critica Barradas. - Infelizmente, a epidemia não vai sumir se pararmos de falar dela e nem se o Ministério da Saúde parar de divulgar os dados.
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Segundo a professora, comunicar a população de forma transparente é fundamental quando há disseminação de alguma doença.
- A população precisa estar informada sobre uma epidemia. Comunicação bem feita não gera pânico. O que gera pânico é o que estamos vivendo agora, com o coronavírus, sem uma comunicação oficial eficiente. As pessoas não sabem em que acreditar. O governo federal, ausente, não faz articulação entre estados e municípios. Estamos na maior crise sanitária da História com um ministro sem nenhuma experiência na área - analisa Rita Barradas, que repudia a tentativa do Planalto de forçar o uso da cloroquina para tratar a Covid-19. - Nem na ditadura o governo questionava orientações de médicos e sanitaristas, como agora. Nem no regime militar houve determinação de como tratar doença.
A epidemia nos anos 70 começou com predominância da bactéria meningococo do sorogrupo C. A incidência em São Paulo subiu e 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Em 1972, chegou a 15,64 diagnósticos por 100 mil habitantes, e em 1973, quando atingiu os 29,38 casos por 100 mil habitantes. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Em 1974, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes. Os números são do estudo “A doença meningocócica em São Paulo, Brasil, no século XX”, de José Cássio de Moraes e Rita Barradas. Também houve surtos no Rio e em outros estados, mas a maior concentração de casos se deu na capital paulistana.
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Com a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o presidente "linha dura" Emílio Garrastazu Médici deu lugar ao mais moderado Ernesto Geisel. Ainda houve muita resistência do governo, mas, sob pressão da mídia e da própria epidemia, algumas autoridades começaram a reconhecer o problema publicamente. Foi criada a Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da vacina. Aulas foram suspensas, e escolas de São Paulo abrigaram hospitais de campanha. Três anos após o início da crise, as medidas adequadas começaram a ser tomadas.
Jornalistas de diferentes veículos de imprensa, que trabalharam naquela época, são testemunhas das dificuldades de publicar informações. Ao fazer uma busca pelos arquivos do GLOBO, encontra-se poucas matérias tratando do assunto até 1974, quando as reportagens se tornam muito mais frequentes. No dia 23 de setembro de 1973, O GLOBO publicou uma matéria com o título "Meningite pode ser a causa da morte de duas crianças em Recife". Segundo a reportagem, autoridades locais negavam a existência de uma epidemia, mas uma funcionária do Instituto de Medicina Infantil de Pernambuco disse que os médicos estavam nervosos com a situação. Ainda de acordo com o texto, "os médicos do instituto estão proibidos de falar com a imprensa".
Catarina Schneider é mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutora em Comunicação e Saúde pela Fiocruz. Ela é autora de uma dissertação sobre a epidemia de meningite dos anos 70 que analisa a cobertura do assunto nos jornais O GLOBO e "Folha de São Paulo". Segundo a jornalista, de 1971 a 1973, as matérias que abordavam a situação eram construídas com títulos que mostravam incertezas sobre a doença e os diagnósticos. Em 1974, houve uma flexibilização da censura, mas logo depois o cerco apertou de novo. Só em 1975, quando o número de vacinas disponíveis daria conta de toda a população, a imprensa foi liberada pelos militares para abordar o tema com mais propriedade.
Para a pesquisadora, existe paralelo entre a censura dos anos 70 e a medida do governo atual de restringir a divulgação do número de mortos pela Covid-19.
- Vivemos uma pandemia no mundo e podemos fazer um paralelo com a censura dos anos do regime militar. O governo tenta esconder, disfarçar e até silenciar a real situação do país com a Covid-19, manipulando números de casos e de mortes pela doença. Quando não podemos confiar nas informações que estão sendo divulgadas, ficamos perdidos diante de todo esse caos que estamos vivendo. A censura é o limite do dizer e pode trazer muitas consequências - critica a jornalista, que tem mestrado e Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutorado em Comunicação e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).