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Rio

Pároco que montou presépio com Nossa Senhora e Jesus negros diz que é obrigação da Igreja falar em racismo

Trabalho do padre Wanderson Guedes, exposto na Glória, ainda traz Amazônia em chamas
Padre Wanderson acerta detalhes nas imagens que compõem presépio montado na Glória Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Padre Wanderson acerta detalhes nas imagens que compõem presépio montado na Glória Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO — Mineiro, fã de clássicos da MPB e do carnaval, exímio cozinheiro e engajado em pautas sociais. Aos 54 anos, o padre Wanderson José Guedes é eclético e não gosta quando o moralismo se sobrepõe aos valores em que acredita. Ele, que sempre esteve em meio à arte e tornou-se autodidata, é o autor do presépio gigante que mostra Nossa Senhora e o menino Jesus negros, no meio da Floresta Amazônica devastada pelo fogo. A representação é da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, na Glória, na Zona Sul do Rio. Foi na mesma igreja, no ano passado, que o padre viu a missa em homenagem ao Dia da Consciência Negra terminar em confusão ao ser invadida por um grupo religioso tradicionalista. Este ano, com medo de novos protestos, o pároco cancelou a celebração:

— A Igreja acompanha seu tempo e sua realidade. Ninguém tem o direito de obrigar o outro a ser de um jeito. O problema de todo extremista é não respeitar a liberdade alheia. Muitas pessoas acreditam que a Igreja não deve se envolver com política, mas falar de racismo e cuidar da Amazônia são obrigações de todos nós. Não é pauta de esquerda, nem de direita. É da humanidade, de uma sociedade mais justa, solidária, fraterna e harmônica.

O presépio com Jesus e Maria negros: missa afro que pároco celebrou no ano passado foi invadida por tradicionalistas Foto: Ana Branco / Agência O Globo
O presépio com Jesus e Maria negros: missa afro que pároco celebrou no ano passado foi invadida por tradicionalistas Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Wanderson nasceu em Caeté, cidade mineira berço da Guerra dos Emboabas durante o ciclo do ouro. Aos 23 anos, então diretor de uma fundação cultural, trocou o funcionalismo público pelo seminário. Aos 30, veio para o Rio, onde se ordenou e passou pelas paróquias São João Batista e Nossa Senhora das Graças, em Realengo, na Zona Oeste, e Nossa Senhora da Boa Esperança, em Honório Gurgel, na Zona Norte. Só em 2005 chegou a Sagrado Coração.

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Ateliê de autodidata

É nos fundos da paróquia que ele mantém o ateliê e tem passado várias horas produzindo novas peças para compor o presépi o. Com seu trabalho como artesão e restaurador de obras, custeia os projetos artísticos da igreja, que, segundo ele, não vive está em boa situação financeira.

— Nunca fui acadêmico de arte. Sou autodidata. A ideia vem na minha cabeça e eu faço. No ano passado, a proposta seria um presépio temático do Sínodo da Amazônia (encontro de bispos da Igreja Católica que discutiu a floresta). Mas, por conta da confusão com os grupos ultrarradicais, eu desisti. Guardei o tema para este ano e incluí o racismo, que vem tomando grandes proporções. A Igreja tem o compromisso da evangelização, de não aceitar qualquer tipo de preconceito. Somos todos iguais, e Deus nasceu para todos e ama todos da mesma forma. Deus não tem raça — defende o religioso.

Presépio está exposto na Glória, na Zona Sul do Rio Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Presépio está exposto na Glória, na Zona Sul do Rio Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Por conta da pandemia de Covid-19, as celebrações (de quarta-feira a domingo) têm recebido menos fiéis, mas sempre com lotação máxima permitida.

— A missa dele é uma verdadeira aula. Parece que ele enxerga dentro de cada um de nós. As crianças também ficam encantadas e reclamam quando não é ele o celebrante. É um padre muito verdadeiro e corajoso, de mente aberta e coração boníssimo — diz a aposentada Nilda de Farias, de 73 anos.

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Após o protesto contra a cerimônia com cantos afro-brasileiros e toque de atabaques, Padre Wanderson sofreu ameaças. Mas ele quer retomar a tradição:

— Faço essa missa há 16 anos. Se a Igreja quer caminhar novamente para o tradicionalismo, não tenho problema com isso. Mas não é com pressão e ameaças que vamos chegar a um caminho. Eu tenho o dever e a obrigação de obedecer. Mas também tenho o direito de me manifestar. Fiquei calado, pois achei que não era o momento de falar. Mas vou dialogar com os bispos e ponderar com as autoridades.

O pároco critica a atuação de grupos mais conservadores, defende o sincretismo religioso e, avesso à política, diz que seu partido é o Evangelho.

— Os radicais querem uma Igreja vertical, hermética e moralista. E Jesus Cristo não quis uma Igreja assim. O Brasil é negro em sua maioria, teve uma forte influência africana. Não podemos querer um rito genuinamente romano porque somos sincréticos. As mesmas pessoas que vêm às missas vão aos terreiros. A nossa liturgia não pode ser europeia. O Brasil é essa mistura de religiões, de raças, de ritos, com múltiplas formas de ser e de existir — ressalta o padre.

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O chef das quermesses

Nas horas vagas, o padre gosta de mexer nas panelas. Ainda criança, ele aprendeu a cozinhar com a mãe. Na paróquia e nas quermesses, é o responsável pelo fogão. Sem modéstia, diz que nem com as receitas em mãos conseguem copiar seu tempero ou seus pratos favoritos, carne de porco e, como bom mineiro, pão de queijo. Hoje, padre Wanderson diz não ter uma vida social agitada. Gosta apenas de visitar as irmãs e os sobrinhos em Minas. Nas horas vagas, lê poemas de Cecília Meirelles e Fernando Pessoa. Também tem interesse nas histórias de Agatha Christie, confessa. Para distrair e relaxar, canções clássicas de Bethânia, Gal e Chico. E por que não o carnaval?

— Sambinha de raiz é de lei. Não sei sambar, mas mexo. Tenho ritmo e molejo. Já desfilei por Salgueiro e Estácio. Mas meu sonho é sair na Mangueira.

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Para o Natal, padre Wanderson não titubeia quando perguntado qual pedido faria se encontrasse Papai Noel: a crença no amanhã.

— Não deixem que roubem de nós a esperança. Com todo esse sofrimento, temos que fazer com que a esperança de um novo dia não morra. O que vamos aprender com tudo isso? Não vamos mudar nossa forma de lidar com as pessoas? Temos que sair dessa pandemia mais humanos.