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Conheça a tela 'A redenção de Cam', de 1895, destaque em mostra no MNBA

Obra de Modesto Brocos reflete teses de embranquecimento da população
'A redenção de Cam': representação das teses de embranquecimento da população Foto: Divulgação/MNBA
'A redenção de Cam': representação das teses de embranquecimento da população Foto: Divulgação/MNBA

RIO — Obra mais conhecida do pintor espanhol naturalizado brasileiro Modesto Brocos (1852-1936), a tela “A redenção de Cam” não é uma das maiores da Galeria de Arte Brasileira do Século XIX, onde fica exposta no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA). Seus 2 metros de altura por 1,6 metro de largura não se comparam a obras monumentais como “A Batalha do Avaí”, de Pedro Américo, com 6 metros por 11 metros de largura. Mas os olhos do público inevitavelmente seguem para as quatro figuras pintadas a óleo por Brocos em 1895, no que é considerado um dos mais importantes registros do Brasil pós-Abolição.

Na obra, vê-se três gerações da mesma família, separadas por diferentes gradações de cor de pele. A avó, negra, ergue as mãos aos céus, num gesto de agradecimento pelo nascimento do neto branco, filho de mãe parda. Em um gestual dramático que remete ao romantismo de Eugène Delacroix e Théodore Géricault, os quatro personagens da pintura encarnam o projeto de embranquecimento da população brasileira que encontrou eco nas políticas de imigração europeias, sobretudo de italianos, alemães e espanhóis na virada dos séculos XIX e XX.

DOCUMENTO FUNDAMENTAL DO PAÍS

A tela é um dos destaques da exposição “Das galés às galerias: representações e protagonismos do negro no acervo do MNBA”, que acaba de ser inaugurada. Ao todo, estão à mostra 80 obras do acervo da instituição. Mas não é apenas a importância histórica ou a composição que tornam “A redenção de Cam” um documento visual fundamental do país. Tema de livros, teses acadêmicas e ensaios, a tela é interpretada como uma representação das teorias eugenistas e racialistas em voga no período pós-emancipação.

Seu título faz referência à passagem bíblica da maldição de Canaã, usada por escravagistas para justificar a exploração de mão de obra dos povos africanos. No Gênesis, Cam, filho de Noé, vê o pai embriagado e nu, mas, em vez de cobri-lo, vai contar aos irmãos, Sem e Jafé. No relato bíblico, o patriarca, ao recobrar a consciência, amaldiçoa Canaã, filho de Cam, a quem se refere como “servo dos servos”. A redenção de Cam descrita no título da obra viria, portanto, com o embranquecimento das gerações, celebrado como salvação pela figura que representa a matriarca.

Vencedor da medalha de ouro na Exposição Geral de Belas Artes de 1895, o quadro foi usado para ilustrar o artigo apresentado pelo médico João Batista de Lacerda (1846-1915), cientista e diretor do Museu Nacional do Rio, no I Congresso Mundial das Raças, em 1911, em Londres. Um dos maiores entusiastas da tese do embranquecimento da população brasileira — que acreditava ser possível em três gerações —, Lacerda defendeu no congresso que a miscigenação, atacada pelos representantes europeus, seria benéfica ao Brasil, diante da possibilidade de as características genéticas dos imigrantes brancos eliminarem os traços indígenas e africanos dos habitantes do país.

— “A redenção de Cam” foi pintado em um período em que essas teorias tinham muita força, num momento em que o país precisava apresentar soluções para o contingente de escravos recém-libertos. A assinatura da Lei Áurea não trouxe aos negros a inserção na sociedade — ressalta Cláudia Rocha, coordenadora técnica do MNBA e uma das responsáveis pela curadoria da mostra. — Estas teorias perduraram até a década de 1930, quando se iniciou um processo de valorização da população negra, e sua representação passou a ser repensada.

PINTURA COM ÁGUA SANITÁRIA

Dividida em três núcleos, a exposição destaca a tela de Brocos na segunda parte, entre as representações da escravidão feitas por viajantes, como Frans Post, e o reconhecimento da presença negra na formação do povo brasileiro, em obras como a escultura “Leônidas da Silva, o Diamante Negro”(1938), de Martins Ribeiro.

Em 2014, “A redenção de Cam” foi uma das referências usadas por Letícia Barreto no projeto “A cor do silêncio”, série em que a pintora utiliza água sanitária para retirar o pigmento de tecidos escuros e, assim, formar as imagens.

— É um processo inverso, em que retiro a cor em vez de acrescentá-la. A água sanitária remete à ideia de limpeza, que se relaciona às tentativas de apagamento étnico que perduram até os dias de hoje — observa a pintora.

Desde o ano passado morando em Lisboa, onde já havia vivido entre 2007 e 2013, Letícia acredita que a representação dos negros na arte esteja passando por um período de transformação, graças à própria presença de artistas afrodescendentes nas paredes de museus e galerias:

— É um momento importante de revisão histórica, em que a própria Abolição é vista como uma conquista, e não como um ato de benevolência. É possível ver isso pelas obras assinadas por artistas negros, que estão ampliando seu espaço.