Por Elida Oliveira, G1


O presidente Jair Bolsonaro sancionou nesta quinta-feira (6) a lei que autoriza a internação involuntária de dependentes químicos em hospitais psiquiátricos ou alas psiquiátricas de hospitais gerais sem a necessidade de autorização judicial. Esse tipo de internação pode ser feito sem o consentimento do paciente, mas precisa da aprovação de um médico.

Pelas regras anteriores à nova lei, somente a família do dependente químico poderia pedir a internação involuntária.

Agora, a lei amplia o número de pessoas que podem pedir internação sem o consentimento, seguindo alguns critérios. O pedido pode partir de um servidor da área da saúde, assistente social ou de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), exceto profissionais da segurança pública. Em todo caso, o aval médico continua sendo necessário.

A nova lei levanta debate entre profissionais que trabalham com dependentes químicos e entidades. Confira os principais pontos:

  • Não há solução simples para o problema da dependência química - Luís Fernando Tófoli, psiquiatra da Unicamp.
  • Internação involuntária é necessária em casos de risco de vida a si próprio, de terceiros quando há potencial de dilapidação de patrimônio - Emmanoel Fortes, diretor de fiscalização do Conselho Federal de Medicina (CFM), membro da câmara técnica de psiquiatria.
  • O tratamento contra o uso de drogas deve ser particularizado para cada usuário e a internação não pode ser banalizada - Paulo Aguiar, conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).
  • Existe uma parcela da população que não se beneficia do método usado por narcóticos e alcoólicos anônimos - Dartiu da Silveira, psiquiatra e professor da Unifesp.
  • O mais indicado é receber um consentimento por escrito para o tratamento em todos os contextos - Vladimir Poznyak, médico da Organização Mundial de Saúde, em nota ao G1
  • Vemos com profunda preocupação a alteração na polícia nacional sobre drogas no Brasil, que adota uma abordagem punitiva e proibicionista, ao invés de medidas que priorizem a redução de danos, o enfoque na saúde pública e nos direitos humanos - Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional, em nota.

Análises sobre a internação involuntária

O Conselho Federal de Medicina (CFM) é a favor da internação involuntária e da desintoxicação do dependente químico, mas pondera que a medida não deve ser aplicada em todos os casos.

"Não será qualquer pessoa que consome droga que será internada involuntariamente", afirma Emmanoel Fortes, diretor de fiscalização Conselho e membro da câmara técnica de psiquiatria.

Ele afirma que, para ser internado involuntariamente, o usuário de droga tem que se enquadrar em alguns critérios estabelecidos na Resolução 2056/2013, sobre regras gerais da segurança do ato médico, e à Resolução 2057/2013, específica da psiquiatria. Entre esses critérios, estão o risco à própria vida ou de outras pessoas e ameaças de destruição de patrimônio.

"Ainda assim, a internação tem que passar por aprovação médica", afirma Fortes.

"As internações acontecerão em hospitais psiquiátricos. Nos hospitais gerais, tem que ter ala de psiquiatria, com equipe específica com médico, fisioterapeutas, nutricionistas." - Emmanoel Fortes, do CFM.

Paulo Aguiar, conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), pondera que a internação involuntária pode levar a ações de internação em massa, o que para ele não é efetivo. Aguiar afirma que cada usuário tem uma ligação diferente com a droga e o tipo de tratamento que tem menos recaídas é personalizado caso a caso.

"A gente não é contra a internação. Em algumas situações ela é imprescindível e importante", diz. "Mas a internação involuntária, de forma arbitrária e sem nenhuma intermediação com o sujeito, a família, e a equipe [médica], só vai levar a mais sofrimento" - Paulo Aguiar, do CFP.

"Há uma certa autorização para a internação em massa, sem olhar a particularidade de cada caso. Vamos ver, cada vez mais e mais, ações em locais de uso de drogas para internar os usuários. É o casamento perfeito da duas práticas que criticamos: a privação da droga e da liberdade", afirma.

Aguiar cita a política de internação involuntária adotada em pessoas com transtornos mentais adotada no país na década de 1970, que levou a mortes e abandonos em instituições psiquiátricas.

Outro ponto de divergência na nova lei são as comunidades terapêuticas. A nova lei fortalece este tipo de internação, mas determina que elas devam ser voluntárias. Para Aguiar, na prática, a lei abrirá brecha para internações involuntárias nestes locais.

"A lei desmonta toda a rede psicossocial no SUS, passando a priorizar as comunidades terapêuticas, que são em 90% delas geridas por grupos religiosos, sem profissionais de saúde. Haverá repasse de dinheiro público para estas entidades, sem a previsão de quem vai fiscalizar. Com a lei antiga, em tese, as comunidades terapêuticas não poderiam fazer internação involuntária. Mas nas nossas inspeções [do Conselho Federal de Psicologia] vimos muitos usuários que não queriam estar ali. Com a nova lei, isso abre espaço para acontecer mais ainda" , afirma Paulo Aguiar, do Conselho Federal de Psicologia.

ONU indica o consentimento

O médico Vladimir Poznyak, especialista do departamento de saúde mental da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirmou ao G1 que a organização preconiza o tratamento voluntário, inclusive com o consentimento por escrito do paciente.

"A OMS promove o tratamento voluntário para saúde mental e uso de substâncias tóxicas, e a boa prática é receber um consentimento por escrito para o tratamento em todos os contextos de tratamento", diz Poznyak.

"São raros os casos em que leis nacionais ou marcos regulatórios permitem internações involuntárias, e esses casos estão relacionados a condições médicas que representam ameaça à vida da própria pessoa ou de outras ao seu redor por causa de um distúrbio ou de uma doença", afirma Poznyak, da OMS.

"Outros casos, bastante diferentes, estão relacionados à conversão do cumprimento de pena judicial em tratamento clínico (nos casos de crimes de menor potencial ofensivo cometidos por pessoas sob efeito de drogas). Mas os indivíduos devem ter a escolha de aceitar ou não o tratamento. E nestes casos, não se aplica propriamente a hospitalização, mas o tratamento ambulatorial", diz o especialista da ONU.

Anistia Internacional vê com preocupação

A Anistia Internacional publicou uma nota em seu site, assinada pela diretora-executiva Jurema Werneck.

“Vemos com profunda preocupação a alteração na polícia nacional sobre drogas no Brasil, que adota uma abordagem punitiva e proibicionista, ao invés de medidas que priorizem a redução de danos, o enfoque na saúde pública e nos direitos humanos”, pontua.

“A abordagem da abstinência como solução não está amparada em investigação científica ou em melhores práticas de saúde, e já se revelou ineficaz em outros momentos. Essa decisão abre espaço para violações de direitos, como práticas de tortura, privação de liberdade e tratamentos cruéis, sem consentimento dos pacientes", afirmou Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil.

"A política definida também prevê o fortalecimento de 'comunidades terapêuticas', quem têm enfoque religioso por meio de investimentos de recursos públicos, com baixa fiscalização e denúncias de práticas que violam direitos. A Anistia Internacional recomenda que a política nacional sobre drogas no Brasil tenha como foco o respeito e a proteção dos direitos humanos, incluindo o acesso a serviços de saúde e redução de danos”, diz Werneck.

Problema não é fácil de resolver

Em entrevista ao Fantástico (veja vídeo abaixo), o psiquiatra Luis Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) afirmou que a nova lei pode passar a impressão para a sociedade de que o problema é fácil de ser resolvido.

"O maior risco é a sinalização que a gente faz para a sociedade de que existe uma solução simples para isso. A internação é uma coisa que deve ser feita em situações muito excepcionais: risco de homicídio, suicídio, incapacidade de reger seus próprios atos", afirma Tófoli, da Unicamp.

Já o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Unifesp, afirma que estudos mostram que a abstinência total pode ser menos efetiva no combate ao vício do que tratamentos contra as drogas que vão retirando a substância aos poucos.

"O método usado por narcóticos anônimos e alcoólicos anônimos [abstinência total] é excelente, mas existe uma parcela da população que não se beneficia deles. Existem estudos americanos mostrando que se você tiver estratégias de redução de danos, onde você tolera que o indivíduo tenha recaídas, a médio prazo, a taxa de abstinência é o dobro", afirma Dartiu Silveira, da Unifesp.

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