• Manuela Azenha
  • Colaboração para Marie Claire
Atualizado em

Se muitas mulheres já passaram por violência sexual, são poucas as que sabem o que a legislação brasileira prevê para as diferentes situações em que um abuso pode acontecer. Aqui, é importante dizer que o Código Penal vem sofrendo importantes alterações nos últimos anos no que diz respeito aos crimes sexuais. Muito recentemente, em 2018, por exemplo, aprovou-se a lei que tipifica o crime de importunação sexual – explicaremos em detalhes mais adiante. As leis que definem o assédio sexual e o estupro são anteriores, de 2001 e 2009, respectivamente.

Somente em 2005 foram extintos dispositivos no mínimo espantosos do nosso Código Penal, como a possibilidade de deixar impune um autor de crime sexual caso ele se casasse com a vítima, ou ainda, caso ela conseguisse se casar depois disso com um terceiro. No mesmo ano, foram revogadas categorizações de vítimas tais como “virgem”, “honesta” (no sentido de recato sexual) e “pública” (referindo-se a prostitutas). Definições assim eram aplicadas para julgar os crimes de sedução e rapto, que também foram abolidos. A mulher, veja só, precisava ser virgem e honesta para ser considerada vítima. Não parece inacreditável que isso era uma exigência há 16 anos atrás?

Importunação sexual, assédio sexual e estupro: o que prevê a legislação brasileira em cada caso (Foto: Malte Mueller/Getty Images)

Importunação sexual, assédio sexual e estupro: o que prevê a legislação brasileira em cada caso (Foto: Malte Mueller/Getty Images)

A legislação avança mas ainda há controvérsias. Em novembro deste ano, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo mudou a sentença de um homem condenado em primeira instância por estupro de vulnerável para importunação sexual. O desembargador João Morenghi, relator do caso, considerou irrelevante o fato de a vítima ter menos de 14 anos de idade, e estabeleceu a pena em um ano, quatro meses e 10 dias, podendo assim ser substituída por prestação de serviços à comunidade.

"Parece claro que, ao aludir a outros atos libidinosos alternativamente à conjunção carnal, o legislador não visou qualquer conduta movida pela concupiscência, mas apenas aquelas equiparáveis ao sexo vaginal. E os atos praticados pelo apelante — fazer a vítima se sentar em seu colo e movimentá-la para cima a fim de se esfregar nela e apertar os seus seios — por óbvio, não possuem tal gravidade", entendeu João.

Promotora do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian diz que a decisão do desembargador recebeu muitas críticas: “A lei penal quando trata do estupro de vulnerável prevê que menor de 14 anos é vítima porque não tem condições de consentir com qualquer ato sexual, seja ele um toque íntimo, mais ou menos invasivo, como a encoxada, a manipulação genital, independentemente de ter havido penetração. Tudo isso configura estupro de vulnerável porque estamos falando de menores de 14 anos, pessoa vulnerável. Essa decisão entendeu que há atos mais brandos, que não são acompanhados de penetração, que poderiam configurar crime de importunação sexual. Então temos esses dois posicionamentos: aqueles que defendem a possibilidade da figura da importunação sexual ser aplicada à vítima menor de 14 anos; e aqueles que entendem que qualquer ato de conotação sexual praticado com essa vítima menor de 14 anos configurará necessariamente estupro”.

Abaixo, explicamos as definições dos tipos penais que se referem à violência sexual:

Importunação sexual
O que diz a lei? Com a nova Lei 13.718/18, sancionada em 2018, alterou-se o Código Penal para definir no artigo 215-A o tipo penal de importunação sexual: “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: pena – reclusão, de 1 a 5 anos, se o ato não constitui crime mais grave”.

Para a legislação penal, ato libidinoso é todo o ato de conotação sexual, não necessariamente de penetração vaginal ou anal. A importunação sexual se distingue do ato obsceno, praticado em local aberto ou exposto ao público, mas não contra uma pessoa determinada. Ou seja, um homem se masturbar num vagão de metrô pode configurar como ato obsceno, mas caso o faça dirigido a uma pessoa em particular, seria enquadrado como importunação sexual. Se ainda houver uso da violência ou ameaça, como para forçar a vítima a masturbá-lo, passa a ser estupro.

"Mas é preciso analisar as circunstâncias de cada caso, não dá para simplesmente categorizar. As diferenças podem ser sutis. Prensar uma mulher contra a parede e passar a mão no corpo dela pode configurar importunação sexual, mas dependendo do quão invasivo esse toque foi, pode ser estupro”, explica Silvia.

A lei que tipifica importunação sexual como crime foi aprovada após ampla repercussão do caso de um homem que ejaculou no pescoço de uma mulher dentro de um ônibus em São Paulo, em 2017. Até então, um episódio como esse situava-se num limbo jurídico, entre a importunação ofensiva ao pudor, uma contravenção penal com previsão de pena ínfima, e o estupro, crime hediondo. Naquela ocasião o homem foi detido, levado a uma audiência de custódia e liberado pelo juiz logo em seguida. O magistrado entendeu que não poderia ser enquadrado em crime de estupro porque não houve emprego de violência.

A pena prevista para importunação sexual é maior que a para assédio sexual, crime que pode levar à detenção de 1 a 2 anos. Segundo Silvia Chakian, essa distinção na legislação carece de lógica. “O Código Penal é de 1940 e foi sendo alterado ao longo dos últimos anos. Com isso, a sistematização foi quebrada. A lei da importunação surge nesse momento de maior repúdio à violência sexual contra a mulher. Há projetos de lei que propõem o agravamento de pena desses outros crimes como o assédio, que de fato são baixas, mas é preciso lembrar que a resposta não está exclusivamente nisso. A legislação deve ser vista como ponto de partida, jamais poderá prescindir das políticas públicas, especialmente as voltadas para educação. A violência sexual tem muito a ver como a forma como enxergamos a sexualidade feminina, de como as mulheres ainda têm seus corpos vistos como algo público”, argumenta.

"A violência sexual tem muito a ver como a forma como enxergamos a sexualidade feminina, de como as mulheres ainda têm seus corpos vistos como algo público"

Silvia Chakian



Assédio sexual
O que diz a lei? Segundo o artigo 216-A do Código Penal, de 2001: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1  a 2 anos. Parágrafo 2: a pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 anos”.

Apesar do termo assédio sexual ser usado de forma abrangente, o crime só é aplicado para situações em que o autor ocupa uma posição de superioridade hierárquica em relação à vítima e a conduta tiver como objetivo a obtenção de favorecimento sexual.

Homens também estão sujeito a esse crime, mas as mulheres são as principais vítimas de assédio sexual no ambiente de trabalho. De acordo com levantamento divulgado no início de 2020 pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), nos últimos cinco anos as denúncias de assédio sexual cresceram 63,7%. Apenas em 2019, 442 denúncias foram processadas pelo órgão.

Estupro
O que diz a lei? Segundo o artigo 213 do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena – seis a dez anos de reclusão”.

Com relação a tirar a camisinha durante o ato sexual sem o consentimento da vítima, Silvia diz que no Brasil ainda não existe entendimento jurídico a respeito: “É muito discutível. Pode ser considerado estupro, mas também violência sexual mediante fraude”.

Estupro de vulnerável
O que diz a lei?
Segundo o artigo 217-A. “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos: pena - reclusão, de 8 a 15 anos."  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Nesses casos, a violência é presumida pelo legislador, porque a vítima não tem capacidade de consentir.