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Os desafios impostos às vacinas brasileiras para chegar aos testes com voluntários em 2022

A maioria dos imunizantes precisa resolver pendências de ordem científica, tecnológica e logística para chegar aos braços de participantes dos estudos
Vacinas em desenvolvimento: percalços adiante Foto: Agência O Globo
Vacinas em desenvolvimento: percalços adiante Foto: Agência O Globo

SÃO PAULO — A corrida dos desenvolvedores brasileiros para chegar a uma fórmula vencedora da vacina para Covid-19 é cheia de obstáculos e ainda está longe do fim. Com financiamento público tímido e sem parceria do setor privado, a maioria dos imunizantes precisa resolver também pendências de ordem científica, tecnológica e logística para chegar aos braços dos primeiros voluntários em 2022.  Atualmente, há cerca de uma dezena de imunizantes brasileiros em fase de estudos pré-clínicos, que são os realizados em animais.

Para se ter uma ideia do tamanho do desafio das instituições, tome-se por exemplo a vacina desenvolvida pela Universidade Estadual do Ceará. O grupo de pesquisadores da instituição teve um recurso de R$ 700 mil — custeados pelo governo estadual — para iniciar a fase de testagem em animais, mas teve grandes problemas para importar o material necessário para os testes dos Estados Unidos.

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— Sofremos com um atraso muito grande, de três meses, para o envio de anticorpos (para uso no laboratório). Quando eles chegaram, estavam estragados. São materiais cruciais para o estudo — diz a pesquisadora responsável pelo desenvolvimento do fármaco, Izabel Florindo Guedes.

Uma parte dos imunizantes em estudo chegou a pedir autorização para realizar testes à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não ultrapassou essa etapa. A vacina Versamune, fruto da parceria entre a Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto e da startup Farmacore, realizou a solicitação  em agosto, mas sofre com a pendência de um documento: o dossiê de controle de qualidade do lote inicial de vacinas a serem aplicadas nos primeiros voluntários.

— As doses iniciais do nosso imunizante foram feitas nos Estados Unidos. Era para esse lote inicial estar pronto em julho. Agora, ele só deve chegar no final de dezembro — afirma Helena Faccioli,  CEO da Farmacore.

Helena explica que, uma vez no Brasil, o lote passará por uma série de testes ao longo de um mês e só aí resultará na atualização do pedido para a Anvisa. A executiva acredita que é possível ter resultados de eficácia e realizar um pedido de uso emergencial à reguladora no meio de 2022.

Um dos projetos de vacina mais avançados no país atualmente é o da SpiN-TEC, desenvolvida pelo Centro de Tecnologia de Vacinas da UFMG e a Fiocruz Minas. Os estudos pré-clínicos estão em finalização, e a previsão é que a documentação com os resultados seja submetida à Anvisa até meados de dezembro, com início dos testes em humanos em março de 2022. Mesmo assim, não há expectativa de finalização de fase 3 antes do último trimestre do ano que vem.

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— Temos bons grupos de pesquisa nas universidades brasileiras capazes de desenvolver vacinas, testar em animais e mostrar sua eficácia. Também temos bons grupos na área de ensaios clínicos, em especial as fases 2 e 3. E temos um sistema de distribuição de alta capilaridade, que é o SUS. Falta infraestrutura para transpor da pesquisa básica para o ensaio clínico. Laboratórios que produzam insumos injetáveis em humanos no Brasil. E um setor farmacêutico privado atuando —  enumera o pesquisador Ricardo Gazzinelli, um dos coordenadores da SpiN-TEC.

O imunizante da UFMG e Fiocruz Minas recebeu financiamento inicial do MCTI para o desenvolvimento do conceito da vacina e, mais recentemente, verba do ministério e da Prefeitura e Belo Horizonte para as fases 1 e 2 de estudos clínicos na faixa dos R$ 20 milhões. Ainda não há recursos para à fase 3, diz Gazzinelli.

— O grande sucesso das vacinas fora do Brasil foi o envolvimento do setor privado com as universidades e institutos de pesquisa. É outra lacuna a ser preenchida, porque à medida que esses testes vão avançando o custo fica mais alto. E as farmacêuticas têm experiência em aprovação de produtos nas agências reguladoras, o processo seria muito mais rápido —  afirma.

Outra vacina que chegou a avançar até o pedido, mas ainda deve demorar a romper a fase clínica  — como se chama a etapa do estudo em que há a aplicação do fármaco em humanos — é o imunizante em versão spray do Instituto do Coração (InCor) em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a USP. Para eles ainda falta definir qual será a parceira terceirizada que produzirá as unidades iniciais do spray. A pesquisadora Daniela Santoro, da Unifesp, explica que os estudos com a participação de voluntários ainda devem se estender pelo segundo semestre do ano que vem.

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O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) informou à reportagem que investiu R$ 31 milhões de reais entre 2020 e início de 2021 para o desenvolvimento de 15 estratégias vacinais no Brasil. Além disso, cinco vacinas (quatro nacionais e uma licenciada) têm R$ 105 milhões garantidos, para dividirem, e já poderão ser usados tão logo a Anvisa dê o aval para iniciar os testes em humanos para as fases I e II.

Vantagens do desenvolvimento nacional

O desenvolvimento de uma vacina nacional é estratégico para baratear custo e conferir autonomia sobre a atualização do imunizante frente a novas variantes, preocupação constante quando se trata de Covid.

— Quando se faz transferência de tecnologia ou importamos um produto final, ficamos acoplados ao produtor mundial e às decisões que ele tomar. Desenvolvendo uma vacina aqui, ganhamos autonomia sobre as decisões e atualizações dessa vacina. E com a expectativa de ter um custo baixo e compatível com o SUS — afirma a engenheira química Leda Castilho, coordenadora do projeto da UFRJVac, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A vacina da UFRJ começou a ser desenvolvida no ano passado e contém antígenos de três variantes, incluindo as mais prevalentes no Brasil (Delta e Gama/P1), com possibilidade de atualização para contemplar novas variantes. Até agora, o projeto recebeu R$ 2 milhões da Fast Grants, uma iniciativa de doadores dos Estados Unidos. Há perspectivas de que nos próximos meses somem-se fundos da Faperj, da Alerj e do MCTI.

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O financiamento é essencial para o avanço do projeto. Os estudos essenciais em animais já foram concluídos, e a previsão é apresentar à Anvisa até janeiro o conjunto completo de dados de qualidade do produto e de segurança e eficácia em animais, com expectativa de início de estudos clínicos para o primeiro trimestre de 2022. Se tudo correr como previsto, o pedido de uso emergencial à Anvisa poderia ser feito no final do ano que vem.

— Foram muitos desafios em decorrência até da falta de cultura e experiência de desenvolvermos produtos farmacêuticos no Brasil. Se tivéssemos conseguido estabelecer parceria com alguma empresa desde o início, poderia ter caminhado mais rápido. Foi preciso encontrar os meios, procurar parceiros para determinadas etapas. Tivemos sorte de poder realizar grandes trocas com parceiros, levar e trazer expertise para a UFRJ, avançando até um ponto do desenvolvimento em que a universidade brasileira não está muito acostumada a chegar — conta Leda.

ButanVac

Por enquanto, só a ButanVac — do Instituto Butantan, mantida com recursos do governo de São Paulo, da Fundação Bill e Melinda Gates e da Fundação Butantan — chegou aos braços de voluntários brasileiros. São cerca de 300 participantes, com 90% deles tendo recebido doses do novo imunizante.

A previsão de estrear no mercado nacional ou internacional até o fim deste 2021, contudo, foi implodida por percalços nos testes: o protocolo inicial apresentado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) previa que as primeiras etapas contariam com voluntários não-vacinados — algo praticamente impossível diante da avançada cobertura vacinal contra Covid-19 no Brasil.

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— Esperamos ter o resultado de segurança da vacina até o final deste ano e os resultados de imunogenicidade até o começo de 2022. Se tudo der certo, até o final de janeiro já poderemos divulgar resultados mais robustos da fase 1 — diz Eduardo Motti, consultor do estudo da ButanVac. — O que aconteceu com a CoronaVac e as vacinas iniciais da Covid-19 foi algo absolutamente excepcional, nunca houve essa rapidez na realização dos estudos e isso devido a situação que a população estava. O normal é que caminhemos com passos mais seguros.

Vacinas deixam legado

Apesar dos obstáculos, as pesquisas rendem frutos duráveis às instituições. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), por exemplo, o pesquisador responsável, o professor Breno Castello Branco Beirão, do Departamento de Patologia Básica, conta que o desenvolvimento da vacina da Covid-19 levou ao projeto de que a universidade tenha um novo laboratório dedicado à estudos clínicos de diversos medicamentos.

— É um legado, a universidade vai ficar em uma posição em que nunca estivemos antes. Vamos poder desenvolver qualquer vacina para testes clínicos — diz o pesquisador.

A microbiologista Natalia Pasternak explica que é incomparável o desenvolvimento de uma vacina para Covid-19 em uma grande farmacêutica para um imunizante criado por pesquisadores de uma universidade. Para acelerar o processo das instituições de ensino, seria necessário que o Brasil tivesse um aquecido sistema industrial de fabricação de imunizantes, formado por empresas que firmariam acordos com os cientistas para alavancar os seus projetos.

— Uma comparação mais pertinente é pensar na história da Pfizer. A vacina da Pfizer não começa na farmacêutica, ela começa na BioNTech, que é uma empresa pequena de biotecnologia. A parte criativa da vacina foi feita na BioNtech, mas ela não teria capacidade de fazer um teste clínico com 40 mil pessoas, como a Pfizer tem — explica a especialista. — As universidades no Brasil são de ponta, temos tecnologias de ponta, publicamos nas melhores revistas científicas, mas não temos um ecossistema industrial para fazer parceria.