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Pernambuco, a rotina de medo no estado que mais mata políticos

Região ainda convive com herança histórica da ação de grupos de extermínio
Câmara Municipal de Gameleira, no interior de Pernambuco: dois vereadores foram assassinados na frente da casa legislativa esse ano Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Câmara Municipal de Gameleira, no interior de Pernambuco: dois vereadores foram assassinados na frente da casa legislativa esse ano Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Ao longo de uma semana, O GLOBO visitou quatro municípios em três regiões diferentes para destrinchar casos de assassinatos de políticos em diferentes contextos. As histórias desses lugares, onde a democracia é ameaçada pela violência, serão contadas em uma série de reportagens, que começa hoje e vai até terça-feira.

Crimes políticos: saiba quem foram as vítimas

Oposição dizimada à bala

Ex-funcionária municipal fez denúncias e precisou sair da cidade Foto: Guito Moreto/Agência O Globo
Ex-funcionária municipal fez denúncias e precisou sair da cidade Foto: Guito Moreto/Agência O Globo

GAMELEIRA (PE) - Uma fila de cinco picapes com as caçambas apinhadas de gente em pé desfilava pelo centro de Gameleira, cidade de 30 mil habitantes na Zona da Mata pernambucana. Ao redor dos carros, motoqueiros se espremiam na via estreita, roncando os motores. Um carro de som berrava sem parar uma adaptação de “Frevo Mulher”, de Zé Ramalho, o jingle da campanha da prefeita Verônica Maria de Oliveira Souza, a Verônica do Major (PSB). A cena festiva aconteceu no final da tarde do último dia 25 de outubro, um domingo, a 50 metros de onde dois vereadores de oposição foram executados a tiros entre janeiro e abril deste ano.

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O modus operandi dos dois crimes é idêntico: homens com capacetes saltaram de suas motos, dispararam com pistolas em direção às vítimas e fugiram. Até hoje, ninguém foi preso. Os assassinatos fulminaram a oposição à prefeita na Câmara Municipal e geraram uma onda de denúncias contra o grupo que ocupa a prefeitura — com direito à fuga da cidade, escoltada pela polícia, de uma testemunha.

Há mais de 20 anos, Gameleira é feudo político do coronel da reserva da Polícia Militar José Severino Ramos de Souza, marido da atual prefeita de Gameleira. Na cidade, o coronel é conhecido ainda hoje por “Major”, patente que ocupava quando foi nomeado, em 1998, pelo então governador Miguel Arraes, interventor em Gameleira, após o prefeito da época ser afastado do cargo. Ex-ajudante de ordens de Arraes, ele foi eleito em 2004 e reeleito quatro anos depois.

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Em 2016, como não podia concorrer por ter sido condenado por improbidade administrativa, foi sua mulher quem assumiu a gestão. Ramos é uma figura temida na cidade. Em janeiro, foi acusado de agressão por um jornalista que mantém uma página com notícias sobre o município. “Como divulgamos os erros da cidade, eles ficam nervosos e partem para cima”, explicou o homem, num áudio endereçado aos moradores.

Um depoimento, obtido pelo GLOBO, liga o ex-prefeito a um dos homicídios ocorridos neste ano. Uma ex-funcionária da prefeitura afirmou à Polícia Civil que, um mês antes da morte do vereador João Rogério dos Santos de Lima (PSDB), soube que ele seria assassinado, “pois o Major, esposo da prefeita Verônica” havia mandado matá-lo.

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Rogério era considerado um homem marcado para morrer. Sua trajetória política começou dentro da cadeia: foi no presídio de uma cidade vizinha, onde estava preso acusado de ter fornecido a faca usada por um parente num homicídio durante uma briga de bar, que tomou posse como vereador em seu primeiro mandato, em 2012. Ele seria absolvido anos depois. Boquirroto, o vereador protagonizou embates na Câmara que terminaram em pancadaria generalizada. Ele também era uma máquina de denúncias: por meio de listas de transmissão em aplicativos de mensagens, fazia frequentes acusações de corrupção na gestão da prefeitura.

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A mais recente foi publicada em suas redes sociais em dezembro de 2019, pouco antes dos homicídios: num posto de gasolina da cidade, Rogério afirmou ter flagrado funcionários da prefeitura abastecendo carros particulares, com dinheiro público, para irem à praia. Ao longo do mês de janeiro, o vereador passou a articular com seus colegas a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara para apurar a denúncia. Amigos dele garantem que ele havia conseguido a garantia do vereador José Ednaldo Marinho, o Irmão Ednaldo (Republicanos), de que ele assinaria o pedido de abertura da CPI. Não deu tempo: Irmão Ednaldo foi assassinado no fim do mesmo mês.

Após a morte do colega, Rogério ficou com medo. Três semanas após o crime, num documento enviado à Secretaria estadual de Defesa Social, o parlamentar pediu “garantia de vida” e solicitou escolta policial para circular pela cidade. Não foi atendido. Sua família chegou a tentar convencê-lo a sair de Gameleira por um tempo, sem sucesso.

— Dizíamos para ele: “Você não tem peito de aço”. Mas ele decidiu continuar — contou um amigo.

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Por volta das 19h de 24 de abril, Rogério bebia em pé num bar a poucos metros da Câmara, quando um motoqueiro parou próximo ao local, e um homem na garupa saltou sacando uma pistola. O vereador ainda tentou fugir, mas foi atingido por 14 tiros na cabeça, no peito e na barriga. Novamente, os suspeitos fugiram sem serem perseguidos. Irmão Ednaldo e Rogério eram dois dos três vereadores que votavam contra o governo, em um total de 11 — hoje não há mais oposição na Câmara Municipal.

Três meses antes, no dia 29 de janeiro, Irmão Ednaldo foi executado com dois tiros na nuca na frente da Câmara Municipal, pouco depois do término da sessão. Um homem saltou de uma moto, fez os disparos e fugiu pela rua mais movimentada da cidade — que, além da câmara, abriga o fórum e a prefeitura. Só um capacete escondia o seu rosto.

O homicídio causou surpresa entre a população. Evangélico e reservado, Irmão Ednaldo era avesso a polêmicas e considerado um parlamentar independente — que votava ora com a oposição, ora com a situação. Segundo parentes, ele não tinha inimigos nem sofria ameaças. Antes de ser eleito, era funcionário da prefeitura — trabalhava como guarda municipal — e era conhecido pela generosidade: como tinha um limite alto no banco, emprestava o cartão de crédito para conhecidos pegarem dinheiro emprestado à vontade. O assistencialismo o levou à política e à eleição, em 2016, com 326 votos.

— Se ele não tivesse entrado na política, ainda estaria aqui — conta um parente.

Ex-prefeito nega

No mesmo depoimento em que acusou Ramos de ser o mandante da morte de Rogério, a testemunha relatou que tinha medo de ser assassinada. Três semanas depois, deixou Gameleira escoltada pela polícia e não mais voltou. Hoje, ela está no Programa de Proteção à Testemunha.

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— Ednaldo e Rogério foram mortos porque bateram de frente com o poder na cidade. Hoje, em Gameleira, quem fala, morre — disse ao GLOBO.

Ramos nega as acusações e diz que os assassinatos foram motivados por disputas envolvendo traficantes de drogas. Gameleira é um entreposto importante de uma facção que age no estado.

— É tudo mentira. Nunca briguei com ninguém. Apesar de que eles (oposição) provocam para que isso aconteça. Não tem uma conversa minha, uma suspeita contra nenhum dos dois vereadores — diz o ex-prefeito.

Voz calada com 11 tiros à queima-roupa

Candidata à prefeitura, Manuella Mattos discursa, durante ato de campanha em Itambé: o pai, ex-vereador, foi assassinado em 2009, no primeiro caso de homicídio federalizado no país Foto: Guito Moreto/Agência O Globo
Candidata à prefeitura, Manuella Mattos discursa, durante ato de campanha em Itambé: o pai, ex-vereador, foi assassinado em 2009, no primeiro caso de homicídio federalizado no país Foto: Guito Moreto/Agência O Globo

ITAMBÉ (PE) - ‘Bomba, bomba, bomba!’. Abson Matos, de 35 anos, repetia o bordão todos os dias pela manhã ao celular. Depois da marca registrada, vinham acusações de corrupção na prefeitura, longos desabafos contra os roubos na região ou imitações forçadas ironizando figuras políticas locais. Os vídeos eram disparados para dezenas de grupos de WhatsApp com moradores das cidades gêmeas de Itambé, no Norte de Pernambuco, e Pedras de Fogo, já do lado da Paraíba. Na hora do almoço, a “bomba” do dia era assunto na região, apelidada de Fronteira do Medo por conta da atuação de grupos de extermínio.

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Desde o dia 5 de agosto, a população dos municípios não recebe mais as gravações: por volta das 17h, o então pré-candidato a vereador foi executado com 11 tiros dentro do armazém em que fabricava e vendia blocos pré-moldados de concreto, num bairro periférico de Itambé. O crime não teve testemunhas, mas câmeras de segurança mostraram dois homens numa moto bloqueando a entrada do estabelecimento. Um deles entrou e fez os disparos à curta distância, na direção da cabeça da vítima, que morreu na hora.

Os pais de Abson Mattos, pré-candidato, filho foi morto este ano Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Os pais de Abson Mattos, pré-candidato, filho foi morto este ano Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Poucos dias antes de ser executado, Abson alertou, num dos vídeos rotineiros, que havia sido ameaçado. “Não iremos nos calar e não adianta me ameaçar de morte e mandar recados por babões para dizer que vai calar a minha boca nem que seja no chumbo. Pode até me calar na bala, como falaram, que vão estourar minha cara de bala. Mas minha história, minhas palavras e meus áudios vão ficar circulando pela cidade”, disse o pré-candidato. Na mesma gravação, ele denunciava irregularidades na prefeitura de Pedras de Fogo, como o uso de máquinas do município num empreendimento privado.

A Polícia Civil e o Ministério Público de Pernambuco (MP-PE) afirmam já ter solucionado o caso. No último dia 27, os promotores ofereceram uma denúncia contra dois pistoleiros da região pelo crime: Luiz Felipe Sena de Melo, o Lambuzinho, e Cláudio Luiz de Deus Silva. Ambos já respondiam por outros crimes, como roubos e homicídios. Quando foi denunciado, Lambuzinho já estava na cadeia: foi preso três dias após o homicídio de Abson, num tiroteio com policiais. De acordo com a Promotoria, o crime foi motivado por vingança, já que “a vítima tinha noticiado à polícia e denunciado atividades criminosas de Cláudio e seus irmãos”. A família, entretanto, não ficou satisfeita com o desfecho da investigação.

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— Esse crime foi político, teve mandante. Só não vamos saber quem foi. O pobre morre, o rico manda matar — diz o técnico em veterinária Manoel Luis Alves, de 72 anos, pai da vítima.

Ele e a mulher, a dona de casa Maria Aparecida de Matos Silva, de 63, não têm dúvidas de que o assassinato do filho tem relação com as denúncias que fazia sobre a política local.

Ameaças não eram novidade para o pré-candidato. Elas começaram há mais de dez anos, quando virou testemunha de um dos homicídios de maior repercussão da história de Pernambuco: o assassinato de seu primo, o advogado e ex-vereador Manoel Mattos (PT), morto em 2009 por enfrentar grupos de extermínio na Fronteira do Medo. Ele foi um dos mais ativos denunciantes da pistolagem em Pernambuco no início dos anos 2000, enquanto era presidente da Câmara de Itambé. Até hoje, seu legado pode ser testemunhado pela cidade: em várias casas, fotos do político dividem altares com santos.

Logo após o crime, Abson passou a nomear publicamente os assassinos, pois alegou ter ouvido de um deles na manhã anterior à execução de seu primo numa casa de praia no litoral da Paraíba que “o café de Manoel estava coando”. O comerciante, então, foi convencido pela polícia a entrar no Programa de Proteção à Testemunha e, por um ano, viveu fora de Itambé, em Alagoas e no Distrito Federal.

Nos anos seguintes, o crime contra Manoel Mattos seria o primeiro homicídio a ser federalizado no país, já que havia a desconfiança da participação de agentes da polícia da Paraíba. Em 2018, graças em parte ao relato de Abson, o mandante e o responsável pela execução foram condenados.

“Não quero virar mártir”

Em meio à atual campanha eleitoral, Manuella Mattos, de 24, filha de Manoel, foi surpreendida por um turbilhão de mensagens no dia do assassinato de Abson. Amigos e parentes, preocupados, tentavam convencê-la a não seguir com o plano de se candidatar a prefeita de Itambé. Como a jovem persistiu com a ideia, amigos alugaram um carro blindado para que ela circule pelo município.

— Eu não quero virar mártir. Itambé precisa de mim viva, para que eu possa ajudar a mudar a cidade. Por isso, tento me preservar ao máximo. Mas o assassinato do Abson acende um alerta. As pessoas ainda resolvem seus problemas à bala. Nada mudou — conclui a candidata do PT, ao final de um comício no bairro do Maracujá, um dos mais pobres do município, onde fez um discurso inflamado contra a atual gestão da cidade.