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Economia

Guerra do aluguel: Indústrias vão à Justiça contra donos de galpões para barrar reajuste

Em São Paulo, juíza autoriza troca do indicador pelo IPCA em uma ação, mas especialistas consideram tema complexo
Centro de distribuição da Amazon em galpão da Prologis em Cajamar Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Centro de distribuição da Amazon em galpão da Prologis em Cajamar Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO — A alta do índice de inflação mais usado para reajustar os aluguéis, o IGP-M — que em 2020 saltou 23,14% —, gerou uma corrida tanto de pessoas físicas como de empresas para substituir o indicador por outros, como o IPCA, por meio de negociação ou ação judicial. A onda mais recente de processos é protagonizada pelas indústrias.

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Ao não conseguirem negociar um reajuste menor com os donos dos imóveis de galpões logísticos ou plantas industriais que ocupam, várias indústrias entraram na Justiça.

Advogados de grandes escritórios ouvidos pelo GLOBO afirmam que grandes empresas de setores como os de alimentos, embalagens, bens de consumo e até mesmo celulose e papel têm buscado orientação jurídica para negociar a substituição do índice de correção em galpões logísticos e industriais, além de escritórios.

Em São Paulo, a primeira decisão significativa para o segmento industrial foi dada em 26 de janeiro, quando uma multinacional do ramo de tintas conseguiu uma liminar (decisão provisória) que substituiu o IGP-M pelo IPCA no contrato de locação referente à planta fabril da indústria.

O indexador substituto acumulou no ano passado alta de 4,52%, a menor desde 2016.

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Inviabilidade econômica

A juíza Tamara Hochgreb Matos, da 24ª Vara Cível de São Paulo, argumentou em sua decisão que o IGP-M, previsto no contrato firmado entre a indústria e um fundo imobiliário, refletia “índice muito superior ao da inflação real do mesmo ano” e que o IPCA era o “mais adequado para manutenção do poder de compra da moeda”.

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A magistrada afirmou ainda que “a aplicação de índice de reajuste em desacordo com a real inflação do país pode tornar inviável a atividade econômica” do locatário.

Segundo o advogado Renato Moraes, sócio do escritório Cascione e representante da multinacional que move a ação, a diferença percentual entre o IGP-M e o IPCA no caso em questão significaria um custo extra mensal de aproximadamente R$ 40 mil para a empresa, em plena pandemia.

Imóveis poderão ser usados como garantia de mais de um financiamento Foto: Divulgação
Imóveis poderão ser usados como garantia de mais de um financiamento Foto: Divulgação

De modo geral, indústrias têm contratos de longo prazo, e o custo de desocupação do imóvel é alto, o que inviabiliza que essas empresas cogitem mudanças de endereço devido a altas no valor do aluguel.

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— Essa subida repentina do IGP-M foi causada por fatores excepcionais, não refletem a inflação real no país, que está entre 4% e 5% em 12 meses. O Código Civil prevê que o juiz corrija o contrato desequilibrado — afirma Moraes.

Segundo o advogado, que acompanha outros casos similares na Justiça, os locatários têm tido maior dificuldade para negociar a troca de indexador com os fundos imobiliários:

— Muitos proprietários têm topado alterar o índice, mas alguns fundos alegam que, como têm compromisso fiduciário com os cotistas, não podem negociar. Foi o que ocorreu neste caso (da indústria de tintas).

O fundo imobiliário ainda pode recorrer da liminar.

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Há casos de acordo

O caso dessa indústria, que não se manifesta publicamente sobre a ação, é o primeiro a conseguir uma liminar, mas não é o único em tramitação na Justiça, segundo especialistas.

As indústrias que foram à Justiça argumentam, no geral, que a cláusula de reajuste dos contratos de aluguel tem a função de manter o poder de compra da moeda e que, excepcionalmente, a aplicação do IGP-M causa distorção contra o locatário.

Também afirmam que esse custo extraordinário comprimiria as margens já apertadas em meio à pandemia.

A maior parte das negociações tem chegado a um acordo sem necessidade de passar pelo litígio, ressalta Marc Stalder, sócio do escritório Demarest.

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Apesar disso, ele afirma que, de fato, é mais complexa a negociação com fundos imobiliários, devido às limitações dadas a gestores pelo regulamento desses fundos.

O advogado representa tanto fundos imobiliários donos de ativos quanto empresas que negociam a troca de índice de reajuste.

De acordo com Stalder, o argumento de que os negócios de determinado fundo ou indústria vão mal não é válido juridicamente, nem necessariamente é levado em conta pela Justiça:

— O argumento precisa ter validade jurídica. OIGP-M teve uma alta extraordinária devido a oscilações cambiais em meio à pandemia. Quem pede a substituição do indicador na Justiça argumenta que a alta é distorcida e que o contrato de aluguel que prevê reajuste pelo indicador precisa ser reequilibrado.

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Para José Freire, do escritório Peixoto&Cury, os juízes podem, sim, analisar a situação econômica da empresa que pedir a mudança no reajuste, bem como a de fundos proprietários de imóveis, por exemplo.

— Setores que foram pouco afetados pela pandemia ou que tiveram ganhos certamente terão mais dificuldade de conseguir na Justiça que o índice de reajuste dos aluguéis seja alterado — conta Freire, que afirma ter sido consultado por empresas em casos do tipo.

Negociação com fundos imobiliários é mais difícil

As empresas que têm buscado negociação com fundos imobiliários para substituir o IGP-M por outro índice na correção dos contratos de aluguel têm enfrentado maior dificuldade e levado mais tempo para chegar a acordos, segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO.

Para Marc Stalder, sócio do escritório Demarest, cada fundo de investimento tem um regulamento que estipula o que o gestor pode negociar, o que dificultaria tratativas:

— Um gestor que não seguiu o regulamento pode ser punido até pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários). Muito provavelmente, se nas regras do fundo está a exigência de corrigir os contratos de aluguel pelo IGP-M, o poder de barganha do gestor é limitado.

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Stalder ressalta que, se o regulamento do fundo não incluir negociação de reajuste, há gestores que entendem não poder dar descontos:

— É possível mudar as regras com a autorização dos cotistas, mas os fundos também tiveram problemas na pandemia, especialmente os que têm ativos como lajes corporativas (cujos preços caíram com a adoção em massa do home office).

O Ifix, índice que reúne os fundos imobiliários, acumulou queda de 10,24% em 2020. Neste ano, o desempenho tem sido melhor, mas, em 12 meses, o Ifix ainda recua 4,3%.

A tendência, diz Stalder, ainda é de os fundos tentarem acordos, para não ficarem com imóveis vazios.

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Segundo o analista Jacinto Santos, da plataforma Funds Explorer, a negociação ainda é a regra, e uma solução comum tem sido dar descontos no reajuste:

— Os gestores têm sido sensíveis à situação, mas, quanto mais alto é o padrão do ativo, maior é a tendência de reajuste integral pelo IGP-M.

No caso de galpões industriais, contam ainda a infraestrutura de transporte do local e a distância até os grandes centros consumidores, diz Santos:

— Consideramos que se o ativo está a até 30 quilômetros de um grande centro, é muito bem localizado. Se houver fila para alugar o imóvel, o repasse vai ser integral, e se o locatário não quiser pagar, terá de arcar com a multa para encerrar o contrato.