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Christian Dunker analisa mal-estar social provocado por condomínios

Para psicanalista, 'condominização' do país gera incapacidade de lidar com diferenças
Christian Dunker: "Vida em condomínio é uma conformação que vem das capitanias hereditárias" Foto: Barbara Lopes / Agência O Globo
Christian Dunker: "Vida em condomínio é uma conformação que vem das capitanias hereditárias" Foto: Barbara Lopes / Agência O Globo

PARATY - O Brasil é um pedaço de terra cercado por muros por todos os lados. A proliferação dos condomínios — físicos e simbólicos — provocou um tipo de sofrimento específico, afirma o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker. Autor do livro “Mal-estar, sofrimento e sintoma” (Boitempo), lançado no ano passado, Dunker identifica os condomínios, não só na sua forma clássica mas também o shopping center e a prisão, como respostas à incapacidade da sociedade em lidar com a diferença. Ele fala hoje, às 15h, na Tenda dos Autores, na mesa “O show do eu”, com Paula Sibilia, professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

No seu livro, você fala sobre a organização da vida em condomínios. Essa lógica seria uma resposta à dificuldade da sociedade em lidar com a diferença?

A gente não conseguiu criar uma cultura que tornasse a diferença um valor. Ela é percebida como um perigo, uma ameaça, um risco de identidade. Meu objetivo foi localizar um sintoma social disso e escolhi o condomínio. O condomínio brasileiro tem uma conformação que vem das capitanias hereditárias, tem uma função de defesa. Os primeiros são construídos em São Paulo, em 1973, e se espraiam para o resto do país, ligados por um mesmo tipo de financiamento e de sócio ao shopping center. Condomínios e shoppings surgem a partir de um mesmo momento e segundo uma lógica parecida. O condomínio tem o muro, uma estrutura ao mesmo tempo simbólica e material, e tem um síndico, cuja função é instrumentalizar a lei. A lei vale para todo mundo, mas no shopping há outra lei. Seguranças privados, jeito de se vestir, de consumir. Tudo para criar uma comunidade de iguais. Nós somos nós, os outros são eles.

E quais as consequências disso?

Você começa a criar uma mentalidade paranoica. O outro vira um bicho potencialmente perigoso e isso gera um sofrimento característico. Você tem um sentimento de apatia, irrelevância, o narcisismo das pequenas diferenças. Somos todos iguais, mas sua caminhonete tem três faróis e a minha duas. O terceiro farol adquire uma dimensão na sua vida que faz toda a diferença. Multiplica-se esse tipo de pequena concorrência, de exibição, de um laço social baseado na inveja.

De que forma essa “condominização” extrapola para outras dimensões da vida?

A gente chama isso de forma de vida, que é um jeito de você articular linguagem, desejo e trabalho em torno de um mal-estar. Eu penso a forma de vida a partir do sofrimento. Você organiza quem você é a partir das coisas que não dão certo. O condomínio é uma forma de vida. Só que as formas de vida têm início, meio e fim. Hoje há uma consciência clara, ascendente, de que o condomínio é uma forma de vida envelhecida, que está sendo questionada. O jovem quer morar no condomínio? Quer pegar 20 anos de sua vida futura, um financiamento e ter uma casa igual às outras? Pode ser o Minha Casa, Minha Vida, pode ser o Alphaville. É um sonho que envelheceu. Os sintomas sociais estão ligados a um momento histórico, a um tipo de conformação. Ele continua presente na sociedade, mas não é mais um ideal como foi no passado.

Onde é possível identificar esses diferentes condomínios?

A sorte do livro foi que a História ajudou. Na Lava-Jato, há uma espécie de mutualismo entre o governo e a empresa, a demissão do Estado, a transferência do seu funcionamento para um síndico. Esse síndico é o cara que administra o repasse de verbas, que é o cara que produz e nem é propriamente político. É uma figura intermediária de autoridade e de poder. Você tem dentro do Estado, condomínios. São figuras difíceis de situar. São do público ou do privado? Uma forma de falar do condomínio é que se trata de uma patologia da relação entre o público e o privado. É disso que estamos tentando nos livrar. Há uma exaustão dessa maneira de tratar a diferença. Então vamos para a rua, vamos inventar outra cidade, outras formas de circulação. É todo um complexo de iniciativas que tentam tratar essa lógica que constrói muros, cria síndicos, hipertrofia a lei e extrai um a mais de sofrimento desse processo.

Os movimentos de contestação surgidos desde 2013 tem uma característica territorial, de ocupação dos espaços. É uma resposta à lógica do condomínio?

Durante muito tempo houve uma cooptação brutal do espaço simbólico associado ao território. Posto essa relação de propriedade, que extingue a experiência pública, a resposta é a ocupação. Vamos ocupar porque aquilo não é nosso. O espaço pertence ao síndico, ao grupo que faz a sua gerência. Não se está reclamando um retorno ao espaço público tal como era, mas a invenção de outra maneira de ligar o território com o espaço. Tem um processo decisivo que foi a mudança na nossa experiência de espaço simbólico que veio com a vida digital. A internet permitiu a ocupação de espaços públicos, criou uma nova geografia. E essa nova geografia forçou uma reconsideração do território. Se isso é possível no mundo virtual, eu quero também uma redefinição no mundo real, com o mesmo tipo de plasticidade.

A identidade é um elemento deste processo, não?

Se o condomínio, no fundo, é um sintoma da nossa incapacidade em lidar com a diferença, ele foi encaminhado como um reforço da identidade. A identidade protege a gente do sofrimento. Quando uma identidade é posta em questionamento, ela tende a se reforçar. Se eu critico a sua virilidade, que essa relação de gênero não está certa, sua resposta mais imediata não é repensar a sua virilidade, mas afirmar que é muito mais macho do que o outro pensa. Tudo para não se haver com o sofrimento, o mal-estar. Vivemos uma nova geografia que torna a tensão entre identidades um fato novo. Não que o preconceito e a opressão de classe, gênero e raça não existissem antes, mas você tinha um tratamento para essas identidades que faziam com que o conflito não fosse tão dramático.

Num debate na Flip, escritoras negras questionaram a ausência de negros na programação. Essa é uma crítica que não se via há tempos, cinco, dez anos.

Essa situação podia ser vivida como sofrimento pelos escritores e escritoras negros, mas não era ali que o conflito podia ser localizado. Agora é. Ainda vai ter um tempo em que o conflito entre identidades vai ocupar muito mais espaço até uma reacomodação do espaço simbólico. Políticas de identidade são estratégias, e não políticas no sentido mais forte, porque não são universalistas. Até se equacionar a relação entre particulares em universal, a tensão vai aparecer retinta de violência, ressentimento, em uma lógica entre o restaurativo e o vingativo. Reivindicações também narcísicas, do nós e os outros.

Nas lutas identitárias, observa-se também muitas divisões dentro dos movimentos feministas, LGBT, negro etc, sobre quem pode participar ou não. Por quê?

O projeto universalista cria uma pressão por alianças. Ele estabelece uma gramática do tipo “iguais até aqui, diferentes depois daqui”. Então, dentro desta lógica, você vai constituindo uma política, alianças, inimigos, adversários, e assim por diante. No Brasil, o que aconteceu foi que o PT, o projeto mais ou menos de esquerda que dirigiu o país durante um tempo, fazia essa função de universal. As esquerdas, mesmo que não concordassem, se associavam porque, bom, temos algo que nos representa e isso é muito melhor do que o outro lado. Só que esse universal foi desativado. Aí se dá a emergência dos particulares que estavam suprimidos na aliança. Esses movimentos cresceram nos anos do PT, a partir do reconhecimento do Estado, que foi se transformando em leis, secretarias, políticas públicas. Mas quando você desativa o universal, ressurge por um lado um sentimento de traição: “eu abri mão de pautas e retóricas, não disse coisas durante esse tempo porque estava renunciando em prol de algo maior. Agora não vou abrir mão de nada. Vou colocar as pautas que me definem dentro do grupo de identidade onde estou. Isso é um prato cheio para a divisão da esquerda e para o progresso de lógicas particularistas, baseadas apenas na expansão da mesma identidade. Isso é uma versão da lógica do condomínio. É um nós. Fui fazer um acordo com a diferença e deu errado. Então, agora não faço mais. É uma derrota de Pirro, um todos contra todos. E esse é um discurso liberal. O mundo virou de ponta-cabeça.