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Isabel Fillardis sobre doenças e dificuldades financeiras: 'Quase passei fome com meus filhos'

Atriz, que superou uma doença autoimune e um câncer na língua, ressurge como cantora e lança projeto musical: 'Estou inteira: 2021 será o ano do meu renascimento'
Isabel Fillardis: vestido Isabela Capeto, luvas Ohlograma e colar Renata K; styling Roberta Campos Foto: Pedro Napolinário
Isabel Fillardis: vestido Isabela Capeto, luvas Ohlograma e colar Renata K; styling Roberta Campos Foto: Pedro Napolinário

"Você me viu nascer”, diz a atriz e cantora Isabel Fillardis, de 47 anos, no início da entrevista, por uma chamada de vídeo, de três horas de duração, numa noite quente de verão. Um filme me vem à mente e peço licença para compartilhar o nosso primeiro encontro. Fim dos anos 1980: eu era produtora de moda e trabalhava na preparação de um megadesfile da marca Biza Vianna. Isabel, por sua vez, começava a modelar. Lembro de a campainha da confecção, localizada num sobrado no Centro do Rio, tocar e eu abrir a porta. Ela apareceu radiante e, como um raio de sol, iluminou tudo à sua volta. Tinha apenas 16 anos e vinha participar do casting. Passou, obviamente, na seleção, e brilhou na passarela montada numa Fundição Progresso ainda pouco desbravada. Os Arcos da Lapa foram testemunhas do sucesso que estava porvir.

Vestido Alix, botas Schutz, brincos e anéis Livia Canuto Foto: Pedro Napolinário
Vestido Alix, botas Schutz, brincos e anéis Livia Canuto Foto: Pedro Napolinário

Nos anos seguintes, Isabel explodiu como modelo, protagonizou editoriais de moda e estrelou campanhas publicitárias milionárias. Também mostrou sua porção cantora no trio feminino As Sublimes, inspirado no lendário The Supremes, da década de 1960, que tinha como estrela Diana Ross. Em 1993, estreou na TV na novela “Renascer”, de Benedito Ruy Barbosa, como a apaixonante Ritinha, e colocou o Brasil inteiro aos seus pés. “Eu não tinha ideia de que era uma menina preta ocupando espaço, no horário nobre, na maior rede de comunicação do país, numa personagem fora da condição de escrava”, analisa Isabel.

Isabek Fillardis: body Animale, calça e blazer, ambos Horto, cinto Isabela Capeto, sandálias Mr.Cat e brincos Renata K Foto: Pedro Apolinário
Isabek Fillardis: body Animale, calça e blazer, ambos Horto, cinto Isabela Capeto, sandálias Mr.Cat e brincos Renata K Foto: Pedro Apolinário

Segui acompanhando a trajetória profissional e o percurso pessoal da atriz. Lembro do casamento na Candelária, em 2000, com o engenheiro Júlio César Santos do nascimento da primeira filha, Annaluz, em 2001, da mãe leoa que emergiu para cuidar de Jamal Anuar, que teve Síndrome de West (tipo de epilepsia que altera o desenvolvimento motor e cognitivo) ao nascer, hoje com 17 anos, e da chegada do temporão, Kalel, de 7. Mais recentemente, observei as idas e vindas na carreira artística.

Isabel usa vestido Andrea Marques e brincos HStern Foto: Pedro Napolinário
Isabel usa vestido Andrea Marques e brincos HStern Foto: Pedro Napolinário

Nessa entrevista, Isabel fala abertamente sobre os graves problemas de saúde que enfrentou — uma doença autoimune que comprometeu a pele do rosto e um câncer na língua que poderia tê-la deixado muda — e que a levaram a recuar, mais de uma vez, na profissão. Também relata como passou a se dar a devida importância como mulher negra e revela quase ter passado fome ao lado dos filhos. Hoje, ciente de ter voz ativa sobre seu destino, ela apresenta o recém-lançado projeto musical solo “Refeita”, composto por quatro músicas, em que canta o que viveu e como renasceu. A seguir, os melhores trechos da nossa conversa.

Representatividade

“A palavra representatividade não existia quando comecei na TV. A importância da Ritinha reverbera até hoje. Já fiz inúmeras personagens, mas quando as pessoas se referem a mim, se lembram dela. Tenho, atualmente, a noção de ter rompido o paradigma de personagens estereotipadas, que minhas rainhas, atrizes como Ruth de Souza e Léa Garcia, interpretaram. Costumo ouvir elogios de mulheres pretas que eram meninas no início dos anos 1990. Elas ressaltam a importância que tive na libertação delas. A consciência negra veio tardia para mim, assim como chegou atrasada ao Brasil. Foram as redes sociais que deram voz ao povo preto."

Isabel: vestido Andrea Marques, anel e colar HStern; Edição de moda: Patricia Tremblais. Beleza: Everson Rocha. Hairstylist: Raquel Reis. Produção executiva: André Storari e Christiano Mattos. Assistente de fotografia: Fabiana Pernambuco. Produção de moda: Mari Bruxa. Assistente de beleza: Rogério dos Santos. Tratamento de imagens: Guilherme Nocera. Agradecimentos: Madi Gastronomia e Stúdio 90 Foto: Pedro Napolinário
Isabel: vestido Andrea Marques, anel e colar HStern; Edição de moda: Patricia Tremblais. Beleza: Everson Rocha. Hairstylist: Raquel Reis. Produção executiva: André Storari e Christiano Mattos. Assistente de fotografia: Fabiana Pernambuco. Produção de moda: Mari Bruxa. Assistente de beleza: Rogério dos Santos. Tratamento de imagens: Guilherme Nocera. Agradecimentos: Madi Gastronomia e Stúdio 90 Foto: Pedro Napolinário

Racismo

“Eu comecei a entender o racismo na TV. Na moda, tapava-se o sol com a peneira e eu, na minha ingenuidade, passei batida. Só a questão da maquiagem me incomodava. Quantas vezes, me vi com a pele cinza e isso doía. Mas foi na televisão que me deparei com um episódio marcante. Interpretei uma executiva numa novela, ela era importante na trama. As atrizes têm uma maleta com joias e adornos do figurino. No dia da prova de roupa, notei que a caixa de todas estava recheada e a minha, praticamente vazia. Lembro de ter falado: ‘Gente, só tem esses brincos pequeninos? Acho que essa mulher é mais poderosa’. Não adiantou. Acabei pedindo para um joalheiro amigo desenvolver algumas peças. Quinze dias depois, cheguei ao estúdio e falei: ‘Olha o presente que ganhei para a personagem!’. Naquela altura, já era superconhecida, não cabia fazer aquilo. Vai dizer que foi o quê? Preconceito.”

Penumbra

“Jamal nasceu em 2003 com Síndrome de West. Nos primeiros anos, precisei me dedicar completamente ao meu filho e isso fez com que me distanciasse do trabalho. Quantas vezes tive que voltar correndo para casa devido às suas crises convulsivas. Em 2007, quando finalmente consegui deixá-lo equilibrado, o meu corpo falou. Falou não, berrou. Desenvolvi uma doença autoimune na pele do rosto chamada Líquen Plano. Um grande melasma preto tomou conta de toda a minha face e, por causa disso, também tive alopecia. A maquiagem não aderia, o que me impossibilitava de atuar e me fez perder um contrato com uma gigante da indústria da beleza. Estava proibida de tomar sol e de ter contato com luminosidade de qualquer tipo. Atravessei um longo período na penumbra. Na época, ninguém perguntou o que estava acontecendo, as pessoas se afastaram. Conto nos dedos das mãos quem ficou ao meu lado. Em 2010, descobriram a causa e eu comecei a me tratar com aplicações de laser. Percebi que havia algo errado comigo: eu tinha aberto mão de um monte de coisas e me deixado para trás. Minha autoestima estava no pé. Comecei a fazer terapia.”

Tumor

“Antes mesmo de engravidar do Kalel, em 2013, notei uma afta na língua. Minha gravidez foi de alto risco devido a uma inflamação no colo do útero. Do sexto mês em diante, passei deitada. E a afta só aumentava. No fim da gestação, parecia uma couve-flor. Porém, estava preocupada com o meu filho, que nasceu prematuro e teve que ficar 15 dias na UTI. Pouco depois de o Kalel se recuperar e vir para a casa, eu e Júlio César nos separamos. Durante uma visita da minha ex-cunhada, que é dentista, comentei sobre a afta. Quando ela viu, falou que me levaria a um estomatologista no dia seguinte. Uma biópsia e duas semanas depois, saiu o resultado: tumor maligno. No mesmo dia, procurei o cirurgião de cabeça e pescoço Jacob Kligerman. Ele falou: ‘Isabel, minha filha, você não fuma nem bebe, como conseguiu ter um câncer na língua? Isso não é comum’. Ele me falou que faria todo possível para tirar um pedaço da língua sem comprometer a minha fala. Passei por duas cirurgias até ser considerada curada e, então submetida a 20 sessões de fonoterapia.”

Isabel veste body e calça Lenny, pulseiras Chilaze e Isabela Capeto, brincos Lívia Canuto sandálias Andrea Muller Foto: Pedro Napolinário
Isabel veste body e calça Lenny, pulseiras Chilaze e Isabela Capeto, brincos Lívia Canuto sandálias Andrea Muller Foto: Pedro Napolinário

Lapinha

“Considero o espetáculo ‘Lapinha’ um divisor de águas na minha vida. Em 2011, minha irmã foi a um bar na Lapa e viu uma fotografia de uma mulher que era a minha cara. Ela me mandou a imagem e eu descobri que Joaquina Maria da Conceição da Lapa, a Lapinha, tinha sido atriz e cantora lírica no século XVIII. Fiquei apaixonada. Elaborei o projeto do musical, fui atrás e consegui patrocínio. Em 2014, pensei em cancelar tudo por estar em recuperação do câncer sobre o qual falei com poucas pessoas. Mas recebi todo apoio da equipe e dos diretores. A peça foi o maior sucesso. Lapinha trouxe de volta a cantora que mora em mim.”

Privações

“De 2017 para 2018, as coisas ficaram muito difíceis. Naquele período, eu e o pai dos meus filhos, de quem me separei em 2013, estávamos desempregados. Sem contrato na TV desde 2010, o meu dinheiro guardado chegou ao fim. Quase passei fome com meus filhos. O que colocou comida na minha mesa foi fazer o programa ‘Dancing Brasil’, com apresentação de Xuxa ( Meneguel ), e, depois, a novela ‘Topíssima’, ambos na Record. A Xuxa tem muita importância na minha vida, serei eternamente grata a ela.”

Refeita

“O voltar a cantar veio com a nova mulher que sou hoje e no desejo de ocupar o espaço que deixei lá atrás. Em 2018, ao lado do produtor Tony Prada, comecei a buscar compositores que pudessem falar sobre tudo que eu vivi. Algumas canções foram encomendadas, outras chegaram prontas. Gravei o EP ‘Bel muito prazer’ no fim de 2019 e veio a pandemia. Quando tudo parou, voltei-me para as redes sociais e lancei um quadro chamado ‘Diário de bordo de mãe’. São relatos que tiram o lado lúdico da maternidade, as mulheres se identificam muito. Também senti necessidade de criar conteúdos musicais acústicos para os meus seguidores, novos e antigos, me verem cantando. Quatro videoclipes fazem parte do projeto chamado ‘Refeita’ ( que ela acaba de lançar nas redes sociais, e que você pode conferir no site da ELA ). Vou soltar as músicas aos poucos. O EP vai ser lançado em março. Em paralelo, estou finalizando um documentário sobre a minha trajetória musical, vou filmar o longa ‘O faixa-preta’ e publicar minha biografia no segundo semestre. Estou inteira: 2021 vai ficar marcado como o ano do meu renascimento.”