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Cultura

O que as festas de fim de ano lotadas dizem sobre a nossa sociedade

Espalhadas pelo país, que soma quase 200 mil mortes pela Covid-19, comemorações refletem, para especialistas, opção pelo individualismo
A festa na Avenida Niemeyer que foi interditada por fiscais Foto: Reprodução
A festa na Avenida Niemeyer que foi interditada por fiscais Foto: Reprodução

RIO - O fim de ano é uma época tradicionalmente festiva, mas as imagens e notícias que invadiram as telas nos últimos dias parecem desconectadas do atual momento do mundo. Na semana em que o país se aproximava dos 200 mil óbitos por Covid-19 , multidões se aglomeravam, sem máscara, sem álcool (pelo menos no que diz respeito ao em gel), sem qualquer nesga de distanciamento social, em festas na praia de Ipanema , no Leblon e em Santa Teresa, no Rio de Janeiro — a despeito das instruções mais básicas para se evitar o novo coronavírus.

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O Rio não foi o único nessa toada de “celebração” desenfreada pelo fim de 2020, como se não houvesse amanhã, 2021, no caso. Mesmo com o aumento da contaminação pela doença, as imagens chocantes de festas de arromba vieram de todo o Brasil. A indignação por conta delas gerou até a criação de um perfil no Instagram, @brasilfedecovid , que vem postando flagrantes dos eventos, verdadeiras roletas-russas da Covid-19. Com todas as recomendações sanitárias, é difícil entender o que há por trás desse comportamento.

Acostumada a pesquisar diversos períodos da nossa História, a professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloisa Starling é taxativa: nunca encontrou descrição de um comportamento semelhante em qualquer momento do país. Nem mesmo na Gripe Espanhola, cujos desdobramentos ela investigou em “A bailarina da morte” (Companhia das Letras), escrito em parceria com a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz.

— Pelo contrário, na época houve solidariedade em todas as cidades do país — lembra a historiadora e cientista social. — Essas cenas de aglomeração mostram a expressão de uma sociedade degradada, que não tem nenhuma referência social, que perdeu os valores de pertencimento. E esse é um fenômeno que não sabíamos que existia antes da pandemia, ou que existia e que não queríamos ver.

Em julho, o país viu um bom exemplo desse comportamento anticidadão em uma reportagem do “Fantástico’’, que mostrou um casal carioca atacando um fiscal da vigilância sanitária do Rio e bradando “Cidadão não, engenheiro civil!’’, ao ser abordado por não estar usando máscara. A frase chocou o país, gerando memes e piadas depreciativas. Mas não há, para Heloisa, nada de cômico no descaso de grande parte da população diante das mortes decorrentes da Covid-19.

— Um efeito dessa falta de pertencimento social é sermos incapazes de fazer o luto dos mortos, fingindo que eles não existem — diz ela. — Se não nos comovemos mais com quem morreu, então não somos mais uma sociedade, somos uma solidão. Porque o luto é onde a sociedade se reencontra consigo mesma.

Lógica do mais ‘forte’

Autor de “Cidade febril — Cortiços e epidemias na Corte Imperial” (Companhia das Letras), Sidnei Chalhoub é outro que investigou os efeitos de epidemias históricas no país. Em relação à crise atual, ele acredita que as próprias características da doença estimulam uma espécie de “darwinismo social’’, que crê na sobrevivência do mais apto. A doença causa maior número de óbitos entre os mais velhos, e os frequentadores das festas não costumam pertencer aos grupos de risco — embora números recentes mostrem o crescimento de casos entre jovens.

— É uma doença que potencializa o que muitos chamam de necropolítica (conceito do filósofo Achille Mbembe, segundo o qual o Estado decide quem vive e quem morre) — lembra Chalhoub, que acaba de editar “História da febre amarela epidêmica’’ (Chão). — Vivemos em uma sociedade que é visivelmente desrespeitosa com a terceira idade. Isso fica claro quando o presidente Bolsonaro diz que o seu passado de atleta irá protegê-lo. Tudo isso leva a uma percepção por parte dos jovens de que vale a pena correr o risco, se preocupando menos com o perigo que representam como transmissores.

Carta a 2021: 'Mais do que antes, é importante conversar sobre recomeços'

Quando o assunto é disciplina em uma crise sanitária, o problema é que sempre haverá “demandas’’, acredita a psicanalista e filósofa Maria Lucia Homem. As dos outros e as nossas:

— Muitas vezes não conseguimos recusar a demanda do outro, não queremos que nossa mãe, nosso pai, passem as festas de fim de ano sozinhos, por exemplo. Mas pode ser o nosso superego introjetado, nossa recusa a perder o direito de nos divertirmos. “Eu ralei, então eu mereço”. É uma demanda que se mistura com uma imperatividade, um dever de ser feliz.

Já o psicanalista Joel Birman aponta uma “melancolia furiosa’’, quando um estado de desânimo se torna destrutivo. A sua principal matéria-prima estaria nas mensagens contraditórias sobre isolamento social entre os governos estaduais e federal. Após dez meses, a população acabou ficando desorientada e sem perspectivas:

— Vivemos um clima de quem perdeu a esperança. Certas formas de melancolia têm uma dimensão de destrutividade, como quem desafia a morte em uma festa com 500 pessoas.

Para Birman, autor de “O trauma na pandemia do coronavírus” (Civilização Brasileira), os líderes políticos podem acalmar a população com planos mais claros sobre restrições, mas também apresentando prazos e perspectivas para o futuro.

— O que tinha que ser dito é: estamos na etapa final, já temos vacina, vamos fazer um último esforço para sairmos dessa — avalia.

Algo difícil de acontecer, segundo Heloisa Starling, diante da falta de reação da sociedade.

— Ao ver essas imagens de festas, fica a pergunta: qual é o outro lado disso? — indaga a historiadora. — Não há uma reação contra este tipo de comportamento, há apenas paralisia. Vemos apenas um projeto de destruição do país, e não um projeto de futuro.