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Cultura

João Moreira Salles: 'Achei que o país tinha cineasta de mais para matemático de menos'

Diretor de 'Nelson Freire', que homenageia o genial pianista com sessões especiais no Rio e em SP, lembra seu convívio com o músico e comenta cenário das artes e das ciências no país
João Moreira Salles, documentarista, roteirista e produtor de cinema Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
João Moreira Salles, documentarista, roteirista e produtor de cinema Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Diretor de “Nelson Freire” (2003), documentário sobre o pianista brasileiro de projeção internacional que morreu em 1º de novembro, João Moreira Salles homenageia o instrumentista com sessões especiais do filme (também disponível no Globoplay e nas plataformas Looke e Tamanduá) no Rio e em São Paulo, em cópia 35mm, no Espaço Itaú de Cinema. Em entrevista por e-mail, o cineasta fala da convivência com o pianista, dos problemas do Brasil (“a regra geral para ir embora deveria ser: só quando melhorar”), incluindo a fuga de cérebros, que considera “crime de lesa-pátria” (“um país fadado a ser apenas fornecedor de carne e soja para adulto inteligente que faz vacina, iPhone, carro elétrico, supercondutor, inteligência artificial”) e saúda que “artistas abriram os olhos para a ciência”: “me incomodava a sobrevalorização, por aqui, das humanidades em relação às ciências. Cientistas nunca tiveram muita presença na nossa imaginação, e isso é muito triste”.

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Um dos momentos marcantes do filme é a frase resumindo que, diante da música, para Nelson o resto seria sempre isso: “o resto”. Inveja essa ligação ou já se sentiu assim em relação a algo, como o cinema?

Não tenho isso, não. E não sei se invejo. Porque, enquanto dura, é um privilégio, mas quando isso se perde...

Ele teve uma fratura por causa de uma queda numa calçada mal conservada e amigos dizem que ficou deprimido pela dificuldade em voltar a tocar. Esse incidente faz parte de uma possível angústia de se morar no Rio ou no Brasil? Não pensa em se mudar?

Eu provavelmente não teria feito um documentário sobre um grande pianista russo, austríaco ou italiano. Nelson me interessa pelo que tem de brasileiro. De que maneira o mineiro reservado que foi explica a música cristalinamente pura que ele nos deixa? O recato dele, aquela espécie de quietude dos mineiros, explica a ausência completa de espalhafato no seu modo de tocar? Acho que explica muito, e suspeito que Nelson também achava. Por isso ele voltava. Morar longe não é tão simples assim. A gente se distancia da fonte. Nelson podia morar fora, tinha meios, mas nunca deixou de retornar. Mesmo com as calçadas. Quem sabe até por causa delas, no sentido de que, quanto maior as carências, mais importante é não abandonar o barco. Se todo mundo for embora, quem sobra? Tirando os perseguidos, os que passam fome, os sem perspectivas, a regra geral para ir embora deveria ser a seguinte: só quando melhorar.

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Áreas como a ciência e principalmente a matemática têm merecido sua atenção, inclusive com o fundo que criou. Como se aproximou delas?

É natural que a gente se interesse por aquilo que conhece pouco. E também o fato de que me incomodava a sobrevalorização, por aqui, das humanidades em relação às ciências. Cientistas nunca tiveram muita presença na nossa imaginação, e isso é muito triste. Em certo momento, achei que o país tinha cineasta de mais para matemático de menos. As pontes cairiam, mas seriam lindamente filmadas. Claro, eram outros tempos. Hoje, tanto artistas quanto cientistas se tornaram invisíveis, quando não indesejáveis. É lamentável, mas essa condição ao menos produziu solidariedade entre esses dois campos da invenção humana. Artistas abriram os olhos para a ciência, se dispuseram a compreender melhor como ela funciona. Cientistas recorreram às humanidades para entender o que se passa.

Com a pandemia, a ciência ganhou projeção, mas o país enfrenta um cenário da chamada fuga de cérebros. Como vê isso?

Como um crime de lesa-pátria cometido por quem está na origem dessa diáspora. Paulo Guedes é gravado dizendo que os Estados Unidos são o que são porque há mais de cem anos eles investem em ciência. Estranhamente, o que é bom para os EUA não é bom para o Brasil. Ao menos, não para o Brasil que essa gente tem na cabeça, um país fadado a ser apenas fornecedor de carne e soja para adulto inteligente que faz vacina, iPhone, carro elétrico, supercondutor, inteligência artificial. Poucas semanas depois da gravação, Guedes bloqueou 87% dos recursos de um fundo destinado à ciência e os entregou a ministérios gastadores capazes de ajudar o chefe a se reeleger. É uma guerra contra a inteligência. Diante disso, não se deve estranhar que a nossa juventude esteja correndo para o embarque internacional. Isso sem falar na perseguição a cientistas que teimam em dizer que a Amazônia está prestes a virar uma savana, que remédio para malária cura malária, não cura Covid etc. Talvez a burrice também seja um fator de expulsão desses talentos. É difícil viver no meio de idiotas.

CENA DO DOCUMENTÁRIO NELSON FREIRE, DE JOÃO MOREIRA SALLES. Foto: Divulgação
CENA DO DOCUMENTÁRIO NELSON FREIRE, DE JOÃO MOREIRA SALLES. Foto: Divulgação

Há material inédito guardado das filmagens do longa?

Quase todo material não usado era musical, ou seja, era Nelson no piano. Num filme de duas horas, seria impossível incluir na íntegra boa parte das tantas peças que ele tocou ao longo de dois anos de filmagem. Mas existe outra razão mais interessante. Em “Nelson Freire”, a música nunca é pano de fundo. Ela só é ouvida quando está sendo executada diante dos olhos do espectador. Em dois ou três casos ela se estende para a sequência seguinte, mas só porque não quis interrompê-la no meio de uma frase musical. Nesse sentido, foi meu primeiro documentário sem trilha sonora. Pode parecer gozado, mas tecnicamente é verdade.

Como era a convivência com o pianista?

Foi uma aproximação lenta, cuidadosa. Começamos filmando à distância e só aos poucos chegamos perto. Sem fazer muitas perguntas. A ideia era testar a ideia de que se pode falar de outros modos, de que o silêncio diz muitas coisas. Desde a introdução do som no cinema, documentários dependeram da palavra falada. Foi bom encontrar alguém que preferia se comunicar de outro jeito. Ter tido consciência disso desde o início foi importante. Todo mundo dizia: “O Nelson não gosta de falar”. Não era verdade. Ele gostava, sim. Apenas tinha outras maneiras de dizer as coisas. A música era a mais evidente delas, mas não a única. O jeito maroto como ele sorria com os olhos, as hesitações, os pigarros, as frases inacabadas que deixava no ar, os silêncios bonitos — tudo isso dizia muito. Só no último dia Nelson se sentou diante da câmera para nos dar uma entrevista formal.

Houve histórias curiosas?

Tem o gato da Martha Argerich ( pianista argentina e grande amiga de Nelson ). Um bandido. Tínhamos passado a noite filmando na casa dela. Às cinco da manhã ela foi dormir e a gente começou a levar o material para a van. Nesse vaivém alguém deixou a porta entreaberta. O bicho escapou. Passamos as horas seguintes sussurrando “bichano” pelas ruas de Bruxelas. À toa. Dizem que o facínora voltou sozinho, horas depois.