Brasil

Por que tantos insistem em não usar máscara? Freud explica

Uma psicanalista e uma neurocientista refletem sobre a recusa do acessório, um dos métodos mais eficazes para evitar o coronavírus
Em 25 de março estátua de Tom Jobim na praia do Arpoador tinha máscara de proteção enquanto pessoas passeavam no local sem o acessório Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Em 25 de março estátua de Tom Jobim na praia do Arpoador tinha máscara de proteção enquanto pessoas passeavam no local sem o acessório Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

SÃO PAULO — Mais de um ano de pandemia e sucessivos recordes de mortes parecem não assustar uma parcela dos brasileiros. Ainda é comum ver muita gente sem máscara ou usando a peça de forma errada, o que se torna ainda mais perigoso em locais que geram aglomeração, como pontos de ônibus e comércio de rua. O acessório, tornado obrigatório na maioria dos estados, impede que o vírus entre pelo nariz ou pela boca a partir das gotículas de saliva de alguém que conversa, espirra ou tosse.

A barreira de proteção é ainda mais importante porque os sintomas da Covid-19 demoram alguns dias para se manifestar ou infectam de forma silenciosa os assintomáticos que, sem saber, transmitem o vírus. Com tanta informação e risco, por que as pessoas ainda resistem em usar?

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A psicanalista Maria Homem, professora da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), diz que o humano não é um ser plenamente racional, como pregava o filósofo grego Aristóteles. E a explicação do não uso da máscara está no pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939).

— Freud explica. E pós-freudianamente explica mais ainda. No século XIX, aumenta o campo que vai compreender que o humano é, sobretudo, não racional. Ai surgem a psicologia, a psiquiatria e o Freud. A matriz freudiana está ancorada no conceito de inconsciente. O ser humano é basicamente inconsciente e impulsos. Que ele não controla, que ele não detém a origem. Que não entende muito bem — explica Maria.

Segundo ela, como misto de racionalidade, loucura e fantasia, o ser humano regride a um lugar infantil, de medos arcaicos, quando se depara com uma ameaça que revela sua fragilidade.

— O que de fato está acontecendo no mais profundo das camadas tectônicas mentais e psíquicas da nossa espécie neste momento: estamos tendo consciência irreversível da nossa vulnerabilidade — afirma a psicanalista.

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Estratégias defensivas

Maria ressalta que, diante da consciência da fragilidade da vida, o ser humano tem dois caminhos: ou elabora a situação com pensamentos; ou, se dói muito compreender a "ferida narcísica", que o tira do pedestal da “imagem e semelhança de Deus”, ele regride para estratégias defensivas.

— É a negação de tudo. A pessoa pensa: sou muito potente, não preciso disso, ninguém vai dizer como tenho de andar, que tenho de colocar uma focinheira na cara, Deus está comigo… Elimino qualquer voz que venha me revelar coisas que não quero saber ou não estou preparado para saber. É uma defesa desesperada de uma criança em negação, da dura realidade de que seu lugar narcísico era uma ficção. E o que você faz para dar conta disso? Mais ficção.

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Paralelo a isso, Maria afirma que há outro fenômeno em curso no Brasil: a psicologia das massas. Ela diz que, quanto mais difícil a realidade, mais o ser humano elege lideranças infantis e os coloca num lugar mais imaginário, mais delirante e de onipotência.

— Esse salvador da pátria, mito, que não faz mimi, não é covarde, faz teatrinho com quem morre asfixiado... Ele desdenha da condição humana, da fragilidade, da doença, da mortalidade. Essa é a lógica. É delirante? É. Mas é uma lógica.

Para a neurocientista Claudia Feitosa-Santana, mesmo que o uso seja benéfico, as pessoas têm tempos diferentes de aprendizado e resistem a mudar hábitos.

— É como o uso de camisinha, cinto de segurança ou capacete. Demora um tempo para que as pessoas se convençam a usar. Por isso é preciso política pública, com campanhas educativas, para que as pessoas mudem de hábito — explica.

Claudia afirma que a percepção de risco difere entre as pessoas e muitos têm a ilusão de que são saudáveis e não vão pegar o vírus. A neurocientista lembra ainda que, nas conversas com outras pessoas, o ser humano espera as pistas visuais da comunicação. Com metade do rosto tampado, elas não acontecem. Por isso, admite, para muita gente não é fácil usar máscara, independentemente dos discursos políticos.

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Autoengano como escudo

Para não usar o acessório, muitas pessoas recorrem ao autoengano, argumenta a neurocientista. Acreditam que não vão se infectar ou preferem acreditar em saídas fáceis, como comprar um kit de remédios barato e achar que, com ele, estarão protegidas.

— No autoengano, o que faz bem é acreditar que faz bem — resume. — Nem todas as pessoas deixam de usar a máscara porque são burras ou egoístas. Há uma série de grupos diferentes, que não vão usar ou vão usar errado por motivos diferentes

O autoengano inclui, segundo Claudia Feitosa-Santana, deixar-se ser enganado por teorias da conspiração e fake news, como atribuir a doença a uma "invenção" ou dizer que ela não é perigosa. Sob efeito desse mecanismo, acabam por criar novas justificativas para não usar a máscara.

— Na sociedade do achismo tem espaço para tudo. Muita gente que está fazendo errado terá sorte de não ser infectado, ou terá sintomas leves, e vai continuar achando justificativas que não são plausíveis. Infelizmente, muitas outras vão morrer. A pessoa só se convence quando o problema chega muito próximo — acrescenta.