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Rússia aumenta controle da informação e prevê pena de 15 anos para quem 'mentir' sobre a guerra na Ucrânia

Outra emenda, aprovada em unanimidade por deputados da Duma, contempla punições para quem pedir 'sanções contra a Rússia'
Jornalista caminha por corredor no escritório da rádio Eco de Moscou, de propriedade da Gazprom Foto: - / AFP
Jornalista caminha por corredor no escritório da rádio Eco de Moscou, de propriedade da Gazprom Foto: - / AFP

MOSCOU — O presidente russo, Vladimir Putin, sancionou nesta sexta-feira uma lei com duras penas de prisão e multas para quem publicar “informações falsas” sobre as Forças Armadas do país, em mais uma medida de repressão interna em meio à invasão da Ucrânia.

Horas antes, os deputados da câmara baixa do Parlamento russo, a Duma, aprovaram, por unanimidade, uma emenda que prevê penas de até 15 anos de prisão se forem divulgadas informações que busquem “desacreditar” as Forças Armadas. Autoridades russas já deixaram claro que o próprio ato de chamar a invasão da Ucrânia de “guerra” — o Kremlin usa o termo “operação militar especial” — é considerado desinformação. Outra emenda contempla punições para quem pede “sanções contra a Rússia”, justamente quando o país enfrenta grandes punições de países ocidentais pelo ataque à Ucrânia.

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O texto aprovado se aplica tanto à mídia quanto aos indivíduos que trabalham nas empresas. O presidente da Comissão de Política da Informação da Duma, Alexander Khinshtein, disse ainda que a “lei se aplica a todos os cidadãos, não apenas aos da Rússia”.

Para controlar ainda mais as informações que a população russa recebe sobre o conflito, as autoridades aumentaram, nos últimos dias, a pressão sobre os poucos meios de comunicação independentes que continuam atuando no país apesar do clima hostil.

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Em resposta à nova lei, a BBC suspendeu o serviço de jornalismo na Rússia.

— Esta legislação parece criminalizar o processo de jornalismo independente. Ela nos deixa sem escolha a não ser suspender temporariamente o trabalho de todos os jornalistas da BBC News e sua equipe de apoio na Federação Russa enquanto avaliamos todas as implicações — disse o diretor-geral da emissora, Tim Davie, afirmando que não queria “expor seus jornalistas ao risco de processos criminais simplesmente por fazerem seu trabalho”.

Para burlar o bloqueio, a rede britânica vinha usando uma tática de transmissão popularizada durante a Segunda Guerra Mundial: rádio de ondas curtas, que podem viajar por longas distâncias, para transmitir suas notícias em inglês por quatro horas por dia em Kiev e em partes da Rússia.

Nesta sexta, o órgão regulador russo Roskomnadzor anunciou ter limitado o acesso aos sites da edição em russo da BBC britânica e da emissora internacional alemã Deutsche Welle, bem como ao portal independente Meduza e à rádio Svoboda, antena russa da Rádio Europa Livre, financiada pelo Congresso dos EUA.

Em resposta às medidas, a CNN anunciou que vai interromper suas transmissões para a Rússia "enquanto avalia a situação e os próximos passos a seguir". A Canadian Broadcast Corporation afirmou que vai parar de produzir material jornalístico no país, se dizendo "muito preocupada com a nova legislação aprovada na Rússia", ação também adotada pela agência Bloomberg.

"Com grande pesar decidimos pela suspensão temporária de nosso trabalho de coleta de informação na Rússia", afirmou o editor-chefe da Bloomberg, John Micklethwait, em artigo na página da empresa.

O Facebook , cuja sede fica nos Estados Unidos, também foi bloqueado, e o Twitter teve seu acesso restringido no país.

Um dia antes, a rádio independente Ekho Moskvy (Eco de Moscou) , fundada por dissidentes soviéticos em 1990 e que simbolizava as novas liberdades da Rússia, foi “liquidada” por sua diretoria após pressões do governo por sua cobertura da guerra da Ucrânia.

— O Kremlin pretende controlar a narrativa de sua 'operação militar especial' na Ucrânia ainda mais intensamente do que controla a mídia — disse ao New York Times Aleksei A. Venediktov, editor-geral da Eco de Moscou, de propriedade da Gazprom, a gigante estatal de energia.

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Na terça-feira, as autoridades tiraram a rádio do do ar pela primeira vez desde a tentativa de golpe contra o então líder soviético Mikhail Gorbachev em 1991 e, na quinta-feira, seu conselho de administração decidiu fechar totalmente as portas.

Dmitri Muratov, jornalista que dividiu com a filipina Maria Ressa o Prêmio Nobel da Paz no ano passado , disse que seu jornal Novaya Gazeta, que sobreviveu ao assassinato de seis de seus jornalistas, pode estar prestes a fechar também.

— Tudo o que não é propaganda está sendo eliminado—  disse Muratov ao jornal New York Times.

A rede de TV Chuva (Dojd), estação independente que se autodenomina “o canal otimista”, também também anunciou a suspensão de suas atividades indefinidamente, depois de ter sido bloqueada pela Roskomnadzor por sua cobertura da invasão. Na quinta, a emissora exibiu o balé “O Lago dos Cines” após interromper o funcionamento de suas operações.

A obra foi usada nas transmissões de rádio e televisão da era soviética durante a década de 1980, após a morte de líderes como Leonid Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko, enquanto o governo elaborava planos de sucessão. Mais tarde, os bailarinos também surgiram na TV durante o golpe de 1991 contra Gorbachev, que contribuiria para o fim da União Soviética.

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O site de notícias Znak, por sua vez, disse  que estava encerrando seu trabalho no país “por causa do grande número de restrições que surgiram recentemente sobre a operação da mídia na Rússia”. A The Village, agenda cultural de referência em Moscou, decidiu fechar seu escritório na capital russa e transferi-la para Varsóvia (Polônia). Muitos jornalistas independentes fugiram do país esta semana, temendo repressões ainda piores.

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O presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, disse nesta sexta-feira que as redes sociais com sede nos Estados Unidos são “usadas como armas para espalhar ódio e mentiras”.

Valeri Fadeev, presidente do Conselho de Direitos Humanos do Kremlin, acusou a mídia estrangeira de espalhar notícias falsas sobre o conflito na Ucrânia.

— Lançamos um projeto  para combater a enorme quantidade de notícias falsas vindas da Ucrânia e de países ocidentais.

Operação policial contra ONG

Os fechamentos ocorrem em um ano particularmente difícil na Rússia para a mídia independente, a oposição política e a sociedade civil. Inúmeras publicações e jornalistas foram rotulados de "agentes estrangeiros", categoria que os obriga a realizar procedimentos administrativos pesados, com o risco de serem processados judicialmente por qualquer falta.

O principal opositor do Kremlin, Alexei Navalny, foi preso em seu retorno à Rússia, após sobreviver a uma tentativa de envenenamento. Seu movimento foi desmantelado.

A Justiça russa decidiu em dezembro fechar a fundação Memorial International, ONG mais conhecida do país e símbolo da defesa das liberdades civis. O veredicto foi confirmado após um recurso na segunda-feira.

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A ONG, guardiã da memória das milhões de vítimas dos crimes do stalinismo, anunciou nesta sexta-feira que uma operação policial estava em andamento em seus escritórios em Moscou, levantando temores de seu fechamento efetivo.

Outra organização não governamental, a ONG Assistência Cívica, que ajuda migrantes, também foi alvo de batidas policiais.

De acordo com o observatório russo de direitos humanos OVD-Info, mais de 8 mil pessoas foram presas no país, a maioria em Moscou e São Petersburgo, desde 24 de fevereiro por terem se manifestado contra a invasão da Ucrânia. Embora a repressão afete sobretudo os russos, também há quem aponte para organizações estrangeiras.