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Estados Unidos declaram apoio à suspensão de patentes de vacinas contra a Covid-19

'Tempos e circunstâncias extraordinários exigem medidas extraordinárias', disse, em carta, o governo Biden, que mudou de posição após pressão crescente, inclusive de democratas
Frascos: Estados Unidos se manifestaram a favor de suspensão das patentes de vacinas para enfrentar a pandemia Foto: DADO RUVIC / REUTERS
Frascos: Estados Unidos se manifestaram a favor de suspensão das patentes de vacinas para enfrentar a pandemia Foto: DADO RUVIC / REUTERS

O governo dos Estados Unidos declarou, nesta quarta-feira, posição favorável à suspensão das patentes das vacinas contra a Covid-19, em uma mudança de direção que impulsionará de forma significativa o debate sobre o tema na OMC (Organização Mundial do Comércio).

Em uma carta pública, a representante de Comércio da Casa Branca, Katherine Tai, afirma que "tempos e circunstâncias extraordinários exigem medidas extraordinárias". O presidente Joe Biden enfrentava pressão crescente , especialmente de companheiros de partido, para apoiar a quebra de patentes durante a pandemia.

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"Os EUA apoiam a suspensão de proteções de propriedade intelectual para as vacinas contra a Covid-19 para ajudar a acabar com a pandemia, e vamos participar ativamente em negociações da Organização Mundial do Comércio para que isso aconteça", afirmou Tai em uma rede social.

O posicionamento americano significa um importante apoio a uma campanha liderada por Índia e África do Sul na OMC para a suspensão das patentes, e acontece à revelia das posições da indústria farmacêutica, que afirma que uma mudança nas regras de propriedade intelectual desestimulará a inovação científica.

O governo brasileiro tem se posicionado contra a suspensão de patentes na discussão da OMC e diz apoiar uma "terceira via". Recentemente, o país se uniu a Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Nova Zelândia, Noruega e Turquia em uma proposta que prevê "facilitar acordos de licenciamento para a transferência de tecnologia, expertise e know-how" e "resolver, de forma consensual, qualquer barreira comercial à produção e à distribuição desses produtos, inclusive os relacionados à propriedade intelectual".

Na carta divulgada, o governo americano afirma que "acredita fortemente nas proteções de propriedade intelectual, mas, para conseguir acabar com esta pandemia, apoia a suspensão destas proteções para as vacinas de Covid-19". O texto acrescenta que as negociações na OMC "exigirão tempo, dada a natureza da instituição e a complexidade dos assuntos em questão".

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A declaração acrescenta que o "objetivo do governo é levar o maior número possível de vacinas seguras e eficazes ao maior número possível de pessoas". "Enquanto o nosso fornecimento de vacinas para o povo americano já está assegurado, o governo irá continuar a expandir os seus esforços — trabalhando com o setor privado e todos os parceiros possíveis — para expandir a produção e distribuição de vacinas. Ele também trabalhará para aumentar a produção das matérias-primas necessárias para produzir estas vacinas", diz o texto.

Ainda não se conhecem detalhes do modelo de suspensão de patentes que o governo americano apoia, nem se ele é condizente com a proposta defendida por Índia e África do Sul ao longo de várias reuniões na sede da OMC em Genebra desde setembro. Nesta quarta-feira, os dois países, que ganharam o endosso de mais de 90 paises na OMC, disseram em uma reunião que vão apresentar uma nova proposta na semana que vem, com ajustes. Uma posição-chave nas negociações daqui para a frente será a da União Europeia, que, até aqui, tem sido contrária a mudanças nas regras de propriedade intelectual.

Transferência de tecnologia

O anúncio americano, no entanto, não significa que a produção vá automaticamente aumentar. Além de serem necessárias negociações na OMC, mesmo se a suspensão for aprovada, serão necessários ainda acordos de transferência de tecnologia que permitam a outros produtores globais fabricarem os insumos. Isto será especialmente desafiador nos casos das vacinas com tecnologias mais modernas, como é o caso das desenvolvidas pela Pfizer e pela Moderna.

Ainda assim, especialistas entendem que estes avanços são possíveis. Na década de 1980, por exemplo, produtores indianos conseguiram replicar a produção de uma vacina contra a hepatite B desenvolvida pela Merck e pela GlaxoSmithKline que usava tecnologias de ponta, disponibilizando o insumo por menos de 5% do preço praticado pelas companhias.

Uma pesquisa conduzida em março mostrou que 60% dos americanos apoiam uma revisão das leis de propriedade intelectual ligadas a vacinas. Nesta semana, 108 parlamentares democratas enviaram uma carta ao presidente pedindo para ele suspenser as patentes, afirmando que seria uma forma de "reverter o estrago provocado por Trump".

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A oposição republicana, por sua vez, deve ser estridente em suas acusações contra o presidente, alegando que ele envia um sinal negativo à indústria, de que não deve investir em inovação. Em uma carta divulgada nesta semana, parlamentares republicanos liderados por Jim Jordan (Ohio) e Darrell Issa (Califórnia) disseram que a suspensão pouco faria para melhorar a saúde pública.

“A isenção solicitada é extraordinariamente ampla e desnecessária para cumprir a meta de dar ao maior número possível de pessoas o acesso a vacinas e tratamentos para a Covid-19, inclusive em países em desenvolvimento”, escreveram eles. "Em vez disso, a suspensão prejudicaria a própria inovação que levou ao rápido desenvolvimento recorde de vacinas para Covid-19, que já salvou vidas em todo o mundo, e não melhoraria significativamente a disponibilidade de vacinas."

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Após o anúncio, as ações das empresas — que registraram lucros recordes no primeiro trimestre — despencaram, e as ações da Moderna chegaram a cair 7%. As ações da Novavax, que também está desenvolvendo uma vacina, caíram 11%.

A Federação Internacional da Indústria Farmacêutica (IFPMA) chamou a decisão de "decepcionante". "Concordamos totalmente com o objetivo de fazer com que as vacinas contra a covid-19 sejam distribuídas de forma rápida e equitativa em todo o mundo. Mas, como dissemos consistentemente, a suspensão é umaa resposta simples, mas errada para um problema complexo", disse o grupo farmacêutico em um comunicado..

O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde,  Tedros Adhanom Ghebreyesus, por sua vez, classificou o posicionamento americano como um "momento monumental" na luta contra a pandemia, e um "exemplo poderoso da liderança dos Estados Unidos para resolver questões de saúde global".

A diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala — que, em março, se tornou a primeira mulher e a primeira africana a assumir o comando da organização — não se pronunciou sobre a suspensão de patentes. Ela insistiu, contudo, que os países precisam chegar a um acordo sobre um caminho comum para expandir o acesso  às vacinas.

— A política de vacinas é uma política econômica porque a recuperação econômica global não pode ser sustentada a menos que encontremos uma maneira de obter acesso equitativo às vacinas, terapêuticas e diagnósticos — disse ela à tarde.

Após o encontro em Genebra, o porta-voz da OMC, Keith Rockwell, disse a repórteres que as discussões de quarta-feira sobre a proposta foram "muito construtivas", e que os mais de 40 representantes dos países que se manifestaram durante a reunião expressaram consenso de que é preciso expandir o fornecimento de vacinas a países pobres.