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Cultura

As muitas redes do agitador da ‘perifa’ Marcus Vinicius Faustini

O criador de projeto de transformação social pela cultura recém-premiado em Londres se prepara para voltar à direção teatral
Faustini na Lapa: ele coordena 30 projetos culturais de moradores de seis comunidades pacificadas Foto: Daniela Dacorso / Agência O Globo
Faustini na Lapa: ele coordena 30 projetos culturais de moradores de seis comunidades pacificadas Foto: Daniela Dacorso / Agência O Globo

Marcus Vinicius Faustini cresceu entre a Baixada Fluminense e a comunidade do Cesarão, em Santa Cruz, entre encontros punks e bailes funks, entre identificação com ambientes populares e uma sede incontornável por cultura. Com parentes espalhados pela Zona Norte, desde cedo sentia-se "encorajado a viver essa errância" de caminhar e conhecer a cidade — tida não como um espaço a ser encarado com cautela, um campo minado, mas como seu próprio território de ação. Diretor teatral formado pela Escola Martins Pena, a partir dos anos 1990 encenou textos de Machado de Assis, Clarice Lispector e Gianfrancesco Guarnieri, até entender que não se satisfazia mais em "representar a realidade". Queria transformá-la.

A guinada o lançou à realização de documentários e, aos poucos, ao desenvolvimento de uma metodologia que resultou na criação da Agência Redes para a Juventude. O projeto, implantado em 2010, redimensionou e aproximou políticas culturais, artísticas e sociais. Com patrocínio direto da Petrobras, a agência é responsável, desde 2011, pela coordenação de 30 projetos culturais, que, em vez de importar modelos "de fora", são idealizados e desenvolvidos pelos próprios moradores de seis comunidades pacificadas do Rio. No dia 30 de junho, a agência conquistou reconhecimento internacional. Recebeu o Prêmio Calouste Gulbenkian, em Londres, e uma verba de 175 mil libras, que servirá para implementar a mesma metodologia em Londres e em Manchester, em parceria com o Battersea Arts Centre, o Contact Theatre e o People’s Palace Projects.

Aos 40 anos, frequentemente citado como um dos principais pensadores da cidade hoje, Faustini acaba de fechar um novo contrato com a Petrobras, que permitirá a atuação da agência em mais seis comunidades cariocas, entre elas a Rocinha e o Complexo do Alemão. Além disso, ele volta à direção teatral no mês que vem com o projeto "Home theatre", que levará o teatro para dentro das casas de três mulheres de diferentes pontos da cidade, em três dias de encenações guiadas pela atriz Regiane Alves. Em setembro, ele realiza, a exposição "iPhone me", com projeções de conversas e imagens de celular, no Centro de Artes Calouste Gulbenkian, na Praça Onze. Em novembro, o projeto "Home theatre" vira festival, com encenações em 50 casas pela cidade. Enquanto isso, Faustini prepara-se para dirigir Guti Fraga no monólogo "Tudo ou nada", que estreia em 2013, inspirado no livro homônimo escrito pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares, autor da adaptação da obra.

Com que objetivo surgiu a Agência Redes para a Juventude?

Quando surgiu a UPP, fiquei preocupado, porque a cidade é uma questão que me afeta como artista. Não adianta subir a polícia. E, além disso, o papel da arte não pode ser só levar oficinas ou espetáculos, porque isso reitera a ideia de que ali não é o lugar da criação, de que eles são carentes de cultura, quando, na verdade, eles têm potência. A agência surge da necessidade de inventar algo diferente. Começamos a extrair de dentro desses jovens seus potenciais criativos, mostrando que o território em que vivem é um lugar onde existem coisas, e não o lugar onde não há nada e de onde eles têm que ir embora para conseguir algo. Era preciso inverter essa lógica.

E como isso foi posto em prática?

Pensei no conceito de monstro do Antonio Negri, que é algo potente que chega para subverter a ordem e que ninguém consegue capturar. Queria que o pessoal da arte achasse que isso era uma ação social, e que o pessoal da ação social achasse que era arte. E que ambos me deixassem livre para trabalhar. Então levei o projeto à Petrobras e mostrei a importância de fazer imediatamente novos ambientes de criação.

Como funciona a agência e seus seis núcleos atuais?

A agência é um lugar de criadores. A ideia é fazer com que o moleque da periferia crie um projeto de vida. Que a partir de seus desejos ele estabeleça uma estratégia para interferir e mudar o território em que vive. Queria mudar o espaço-tempo do moleque da favela, porque ele está sempre submetido ao lugar do aluno, do receptor, do ser reconhecido como carente, como alguém que não tem acesso às melhores redes e é levado a dedicar 12 horas por dia exclusivamente ao trabalho. Por exemplo, nas escolas públicas, a primeira coisa que a professora diz é: "Não escreve fora da linha! Isso é um crime!" Desencoraja a lidar com o risco, enquadra o moleque e o leva a acreditar que esse negócio de arte é só para artista, e que ele não pode. Mas, se você não experimenta na juventude, está condenado a ser pobre pelo resto da vida, em todos os sentidos, porque é na juventude que se tem de experimentar e criar suas redes.

Você diz que o objetivo não é o empreendedorismo, mas a autonomia, o fortalecimento da diferença e da singularidade...

O empreendedorismo é, aqui, apenas uma vertente. O foco não é a adequação a um mercado, mas a invenção de um projeto de vida e de um ambiente que faça com que esses jovens possam se jogar na vida. Isso aqui é um Le Parkour artístico, onde você vai encontrando as suas bases para dar novos saltos continuamente. Então, os núcleos da agência são como estúdios de criação. Neles, o garoto é estimulado a revelar seus desejos e a investigar seu território. A partir daí, ele apresenta uma ideia, passa por um ciclo de estímulos e depois leva o projeto a uma banca. Foi assim que os primeiros 30 projetos foram selecionados, receberam R$ 10 mil cada e já estão em ação. E há poucas semanas fechamos nosso segundo contrato com a Petrobras. Trabalho para demonstrar a capacidade desse método.

Qual é a origem do pensamento que o levou a criar a Agência Redes para a Juventude?

Minha ação foi pautada por dois vetores. Deixei de fazer teatro porque não queria mais representar a vida, mas intervir na vida, gerando ambientes criativos capazes de interferir no território. Do outro lado, havia o desejo de criar representações que mostrassem o quanto a criação da periferia é contemporânea e não folclórica. Era preciso questionar uma representação viciada e preconceituosa, que liga a periferia ao banditismo e à miséria.

Mas o que o fez enxergar essa perspectiva?

Tudo começou quando eu estudava cinema e entendi a ideia de dispositivo. Passei a enxergar a arte como um dispositivo, como um disparador de ações, e não apenas como a apresentação de algo, um objeto-fim. Entendi que a arte era a criação de um ambiente estético que disparasse ações, que a arte era a ação em si, o movimento, e não um objeto-síntese, um produto artístico. A arte não precisa ter um fim. Ela deve gerar uma coisa, e depois, outra, e assim por diante. Isso pressupõe que o artista não está no centro, e que o centro está em toda parte, e também na periferia. E nem a obra é a grande coisa. Então, foram dois momentos decisivos. Primeiro, a descoberta da ideia de dispositivo. E, depois, da dimensão da memória, que me levou a escrever o meu livro, o "Guia afetivo da periferia", que narra as lembranças de um garoto da periferia.

De que forma seu livro está ligado à estruturação da metodologia da agência?

Não sabia escrever um romance, então tive de inventar um método e desde então sou um obcecado por métodos e sistemas. Construí mapas das minhas memórias, fiz um inventário dos meus objetos e, depois que terminei, viajei o país com oficinas para mostrar que o método poderia ser usado por outras pessoas. Estimulava as pessoas a criar mapas das suas memórias. E isso me fez ver que essas pessoas já tinham muita coisa dentro de si.

O que faltava para levá-las a ter essa consciência?

O ambiente popular é muito desencorajado a viver da criação. Era preciso criar ambientes capazes de fazer com que elas reconhecessem sua potência e que esses lugares impulsionassem a ação. Fazer entender que o moleque da periferia não é carente, mas potente. Entendi que era preciso abrir os meios de produção. O que esse moleque precisa é de redes, contatos, parcerias e repertório. O desejo de cultura do pobre sempre foi muito grande, mas, na História do país, o pobre ficou sempre longe dos meios de produção, longe daquilo que chamo de máquinas expressivas. Um edital é uma máquina expressiva, por exemplo. Algo que o leva a viabilizar uma ideia, um projeto. Entendi que as experimentações contemporâneas também estão sendo feitas no ambiente popular, mas isso precisa ter visibilidade e espaço. A arte contemporânea trabalha com a invenção de ambientes, e não só na representação. E a arte desses moleques não é mais uma reprodução de mensagem, como é classicamente destinado aos pobres do país.

E que exemplos podemos encontrar desse novo tipo de representação?

Você vê o exemplo do funk e do passinho do menor da favela que está no YouTube. A ação daqueles moleques ali é um pouco intervenção urbana, um pouco videoarte, um pouco dança contemporânea, uma coisa híbrida, mas eles não estão de cachecol, não estão vestidos como um produto cultural. Cada vez mais irão aparecer novidades culturais em sujeitos que não estão vestidos com a roupa da cultura, e nós vamos precisar ter rapidez para reconhecer aquilo, para não cair no movimento clássico de reconhecer três décadas depois que aquilo lá era cultura, que era bom e que agora é preciso homenagear. Esse é o vício do sistema cultural brasileiro, que se acostumou a analisar e a fazer teses posteriores. Esse modelo precisa ser rompido, temos que ser mais rápidos. As instituições precisam legitimar essas diferentes estratégias artísticas que existem no mundo de hoje. O pobre não pode ser commodity da indústria cultural. É preciso reconhecer no outro sua potência, sua singularidade. Temos que superar de uma vez por todas essa ideia de dizer: "Inventa aí a cultura que depois o artista vem aqui e determina o que é." A gente precisa que mais pessoas tenham direito às máquinas expressivas, e que suas expressões sejam reconhecidas. Ainda não usamos nem 30% da potência da cultura carioca. A gente abafa as próprias manifestações. É uma herança escravocrata, que olha para o mototáxi e diz que não pode, que é não é formal. E assim a gente impede as misturas de acontecer. Vejo a gambiarra como o start-up , é nela que está a potência. Porque ela indica o movimento de alguém que quer inventar algo que não encontrou nas redes oferecidas. O poder público não pode ir lá e dizer que não pode, ele tem que ir até lá e potencializar aquilo. E sempre coube aos artistas desse país essa identificação. É a ação política no território pela arte. Não estou sozinho nessa árvore. Trago comigo o Oiticica, o CPC da UNE, o Teatro do Oprimido, o Teatro de Anônimo, o Nós do Morro, o AfroReggae, a Cufa, o Observatório de Favelas, mas numa lógica um pouco diferente, que aposta mais na potencialização da subjetividade do que no estabelecimento de uma identidade.